terça-feira, 15 de dezembro de 2015

SENTENÇA

Acórdão do Processo nº 100/2015 – Associação de Empresários de Tuk-tuks e Associação de Tuk-tuks Ecológicos c. Câmara Municipal da Capital

Acordam em conferência, os juízes do Tribunal Administrativo do Circulo da Capital:

I. RELATÓRIO:
Associação de Empresários de TUK-TUKS e Associação de TUK-TUKS Ecológicos (Autores) propõem, em coligação, uma ação administrativa onde se inserem três pedidos diferenciados contra o Município da Capital no valor de 120 000 euros.
O Autor apresentou as suas alegações e formulou as seguintes conclusões:
a)    A 30 de Junho de 2015, o Presidente da Câmara Municipal de Capital, Dr. Joaquim Substituto, proferiu um despacho que regula a circulação dos triciclos ou ciclomotores afetos à atividade de animação turística, vedando a sua circulação em zonas de intenso trafego de turistas, nomeadamente o Alto Bairro, Alfombra e o Castelinho.
b)    As três zonas alvo do Despacho são aquelas que maior interesse despertam nos turistas e que, como consequência, geram mais lucros para os empresários de Tuk-tuks.
c)    Os autores alegam que não foram ouvidos antes de proferido o despacho e tampouco os seus associados.
d)    Os autores consideram que os empresários de Tuk-tuks estão a ser gravemente lesados por esta disposição, uma vez que as suas receitas vão ser cortadas substancialmente.
e)    Os autores alegam que enquanto sujeitos diretamente afetados pelo despacho proferido pelo Presidente da Câmara da Capital tanto a Associação dos Empresários de Tuk-tuks como a Associação de Tuk-tuks Ecológicos são partes legítimas na presente ação.
f)     Relativamente à competência para emanar o regulamento os autores defendem que o disposto no artigo 23º nº2 alínea c) da Lei das Autarquias Locais (LAL) dispõe que é atribuição do município a regulação da matéria referente aos transportes e comunicações. Para além disso, o artigo 25º nº2 alínea k) da LAL indica que a Assembleia Municipal é competente na pronúncia e deliberação sobre todos os assuntos que visam a prossecução das atribuições do município.
g)    Assim sendo, do confronto destas disposições com as atinentes às competências do Presidente da Câmara Municipal (vide artigo 35º LAL), os autores afirmam que é rigoroso afirmar que o mesmo não é competente para proferir o regulamento em discussão, pois tal competência é da Assembleia Municipal, após iniciativa da Câmara Municipal. Afirmam que, como tal, o Presidente da Câmara Municipal age para além das suas competências consubstanciando esta uma situação evidente de incompetência relativa.
h)    A Associação dos Tuk-tuks ecológicos alega que o despacho em questão é violador do princípio da igualdade, consagrado no artigo 6º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) na sua modalidade de obrigação de diferenciação, que exige tratamento desigual para as situações que forem diferentes pois os Tuk-tuks ecológicos não produzem qualquer tipo de poluição sonora. Concluindo que o despacho não lhes pode ser aplicável tendo em conta a fundamentação apresentada pela Ré.
i)      A Associação de Empresários de Tuk-tuks alega que o Despacho em causa viola o principio da proporcionalidade disposto no artigo 7º do CPA pois a medida tomada no despacho em apreço não é a que lesa em menor medida os direitos e interesses das autoras, mas sim a mais gravosa.
j)      Para além disso, a Associação de Empresários de Tuk-tuks alega haver ainda uma violação do principio da imparcialidade previsto no artigo 9º do CPA. A vertente positiva deste principio impõe um dever à Ré de ponderar todos os interesses equacionáveis para a decisão, sendo que da emissão do Despacho em Causa, não houve uma exaustiva ponderação dos interesses em conflito, uma vez que a Ré só ouviu a Associação de Taxistas.
k)    Como consequência da violação dos princípios administrativos gerais expostos, as autoras alegam a invalidade do despacho emitido pela Ré, nos termos do artigo 143º do CPA.
l)      Os autores alegam que não foram ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final como tinham direito nos termos do artigo 100º do CPA. Defendem que deviam ter sido considerados pois a decisão é suscetível de lesar direitos subjetivos, pondo em causa a atividade profissional dos seus associados. Logo, alegam a não realização da audiência dos interessados constitui a preterição de uma formalidade essencial consubstanciada na violação de um direito fundamental que gera a nulidade do Despacho.
m)  A Associação de tuk-tuks ecológicos fez um pedido de simples apreciação que se encontra consagrado no artigo 37º nº 1. alínea g) do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA). A autora alega que no âmbito desta ação apenas existe interesse processual na propositura da mesma se se puder invocar uma incerteza objetiva sobre a situação jurídica que o autor pretende fazer valer de acordo como artigo 39º nº 1 do CPTA.
n)    A autora invoca que a incerteza objetiva de que o legislador faz depender este pedido tem-se por verificada a partir do momento em que pela interpretação meramente literal do normativo os veículos ecológicos estão abrangidos no seu âmbito, não estando, porém, em harmonia com o espírito do despacho. E usto acontece por que os veículos utilizados pela autora apenas recorrem a energia elétrica e não emitem qualquer tipo de gases poluentes nem produzem qualquer tipo de ruido significativo. O regulamento em questão tem como ratio evitar as emissões atmosféricas e a produção de ruídos perturbadores pelos equipamentos de tuk-tuks tradicionais. Logo, segundo a autora não se justifica que a atividade dos associados da autora esteja abrangida pelo regulamento sob pena de extravasar a sua ratio.
o)    As autoras vêm ambas requerer uma indemnização pelos danos causados aos seus associados pela decisão em questão. A paralisação da atividade nas zonas mais procuradas pelos turistas deu-se no período mais rentável do ano, pelo que as autoras alegam que os danos emergentes e os lucros cessantes cumulam o valor de 100.000, sendo este o montante devido a titulo de indemnização. As autoras invocam o disposto do artigo 3º nº1, 2 e 3 da lei 67/2007 para justificar a obrigação do estado em indemniza-los.
p)    Conclui-se do exposto que, a Câmara Municipal deve ser condenada a ressarcir os danos causados no montante total de 100.000 euros.
A Câmara Municipal da Capital, nos presentes autos, apresentou contestação, alegando, em síntese, o seguinte:

a) Falta de Personalidade Judiciária das Autoras, alegando que estas não são mais que meros grupos informais de empresários do mesmo ramo de atividade;
b) As Autoras não foram constituídas por escritura pública, nem se encontram registadas no Ficheiro Central de Pessoas Coletivas do Instituto de Registos e Notariado;
c) Mais, alegam que o NIF indicado na PI não corresponde a qualquer entidade registada no Ficheiro Central de pessoas Coletivas no IRN;
d) Assim, as autoras não tem personalidade jurídica e consequentemente não têm personalidade judiciária, pelo que a Ré deve ser absolvida da instância com as legais consequências nos termos do número 1, 2 e alínea c) do número 4 do artigo 89º do CPTA na redação do DL nº 214-G/2015 de 02 de Outubro;
e) Mais, alega a Ré que o único requisito para ser motorista de um Tuk-tuks é a titularidade de Licença de Condução de categoria B, a exigência do 12º ano de escolaridade e ter conhecimentos de línguas estrangeiras;
f) A Ré, alega também que o aumento do número de Tuk-tuks tem agravado significativamente a poluição ambiental, tanto no plano da emissão de gases como o plano da poluição sonora;

g) A estes fatos acresce a condução agressiva de muitos motoristas, a ocupação de espaço de parqueamento e a sua circulação em zonas de trânsito condicionado deram origem a várias reclamações feitas por moradores e comerciantes juntos da Ré;
h) A Ré refere também que a atividade exercida pelas Autoras não tem horário definido, afetando o direito ao descanso dos moradores, tendo como consequência a diminuição da qualidade de vida dos moradores;
i) Impugna a Ré o articulado no artigo 13º da PI, alegando que foi feita a discussão na praça pública, sobretudo na comunicação social.
Tendo a Ré respeitado o princípio constitucional da participação dos cidadãos nas decisões da administração, segundo o artigo 267º, número 5 da Constituição da República Portuguesa e também o artigo 101º, número 1,2 e 3 do Código do Procedimento Administrativo;

j) Atendendo ao elevado número de interessados, e a impossibilidade de notificar e promover a audição individual de todos, a Ré optou pelo mecanismo da Consulta Pública.
As Autoras, ao contrário de outras empresas do mesmo setor de atividade, não se pronunciaram formalmente no âmbito dessa Consulta Pública.
k) Por outro lado, o direito de audiência prévia não foi preterido devido à urgência da regulamentação da atividade dos Tuk-tuks em Capital – Artigo 100º número 3-A do Código do Procedimento Administrativo;
l) Com respeito pelo princípio da imparcialidade, consagrada no artigo 9º do Código do Procedimento Administrativo, pelo princípio da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da boa-fé; 
m) Por outro lado, a Ré alega que o Despacho impugnado pelas Autoras, junto à PI, não é o referido no artigo 22º da Contestação.  O despacho exposto pelas Autoras para justificar o seu pedido é falso tal como a assinatura do Presidente da Câmara que também é falsificada.
n) Desta forma, a Ré reserva para si o direito de proceder criminalmente para se apurar a existência de ilícito criminal no comportamento daquelas;

o) Mais, a circulação nestas áreas faz aumentar de forma acentuada a degradação urbana nas zonas onde circulam estes veículos, os modelos de Tuk-tuks ditos ecológicos são muito reduzidos e ambos os modelos de Tuk-tuks geram ruído acima dos níveis legalmente admitidos.
Para além disto, a velocidade a que estes circulam provoca congestionamento do trânsito; ocupam demasiado espaço de parqueamento e circulam, fundamentalmente, em ruas estreitas e residenciais. 
Provocam também, problemas de segurança aos respetivos passageiros, devido à instabilidade destes veículos;
p) A fundamentação material da decisão impugnada tem em conta todas estas situações, não se referindo apenas ao ruído, mas também às perturbações a diversos hábitos locais a que estes veículos deram causa;
q) Conclui-se assim, que a presente ação deve ser julgada improcedente devendo a Ré ser absolvida dos pedidos formulados pelas Autoras.

Foram os autos a vista dos Magistrados do Ministério Público que emitiu douto parecer no sentido de o despacho ser legal, visando prosseguir o interesse público e a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
As questões invocadas pelas Autoras nas suas conclusões, que delimitam o objecto do mesmo, e que cumpre apreciar e decidir são as seguintes:
a) Impugnação do Despacho nº 5030/2015;
b) Aplicabilidade do Despacho supra mencionado aos tuk-tuks ecológicos;
c) Condenação da Ré no pagamento de uma indemnização de 100.000 euros pelos danos sofridos.

II. FUNDAMENTAÇÃO
            1. DA MATÉRIA DE FACTO
Com relevo e interesse para a decisão da causa, consideram-se como provados os seguintes factos:
I.          O Presidente da Câmara Municipal de Capital proferiu o despacho nº5030/2015 no dia 1de Julho de 2015, cujo teor se transcreve:
“O projeto deste despacho foi objeto de consulta pública, dado o elevado números desinteressados e está em conformidade com o disposto no artigo 100º nº 3 c) do Código do Procedimento Administrativo. Considerando que é da competência da Câmara Municipal de Capital zelar pela existência das melhores condições de vida para os seus moradores. Considerando que nestas condições de vida se inclui um meio ambiente digno e favorável ao desenvolvimento saudável da população. Considerando as perturbações feitas a este mesmo meio ambiente por alguns veículos que circulam no território do Município. Considerando o incómodo causado a diversos moradores pelo ruído dos veículos. Considerando as perturbações a diversos hábitos locais a que estes veículos deram origem. Respeitando o princípio da livre iniciativa económica e primando pela criação de condições para a circulação de triciclos ou ciclomotores afectos à actividade de animação turística.
Dr. Joaquim Substituto, Presidente da Câmara de Capital, determino:
1)         A criação de locais de estacionamento próprios e pontos de paragem pré-definidos, em particular nos principais pontos de atracão turística da cidade (110 locais de estacionamento distribuídos por 23 localizações, nomeadamente o Largo da Fonte de Fora, o Largo da Igreja, o Miradouro de Santa Rita de Santos, a Torre do Restelo e o Campo dos Nabos);
2)         A fiscalização e exigência de condições de segurança dos passageiros, designadamente o número de passageiros transportados e seguro, promovendo diligências junto do Instituto de Turismo de Portugal, no sentido de clarificar as regras de segurança e fiscalização da actividade;
3)         A identificação do número existente de veículos e o estabelecimento do número desejável de veículos em circulação;
4)         A creditação dos condutores de triciclos ou ciclomotores afectos à actividade de animação turística;”

II.         A publicação do despacho nº5030/2015 no Diário da República;
III.        O ínicio da exploração dos tuk-tuks ocorreu em Portugal em 2011;
IV.       A relação entre o acréscimo de tuk-tukss e a subida no volume de negócios nos sectores da restauração e comércio;
V.        A circulação de tuk-tuks em zonas de trânsito condicionado e áreas pedonais;
VI.       A circulação de tuk-tuks entre as nove horas da manhã e as onze horas da noite, no período relativo à Rota das Papas – de 15 de Maio de 2015 a 1 de Novembro do mesmo ano;
VII.      Os efeitos nocivos do ruído dos tuk-tuks na saúde pública;
VIII.     As menores emissões de CO2 dos tuk-tuks em comparação com as emissões totais de táxis;
IX.       O menor nível de emissão de gases dos tuk-tuks ecológicos face aos tuk-tuks de motor de combustão;
X.        A publicitação e realização da Consulta Pública;
XI.       A não manifestação da Associação de Empresários de Tuk-tuks (AETT) e da Associação dos Tuk-tuks Ecológicos (ATTE) no âmbito da Consulta Pública;
XII.      Existência da delegação de poderes conforme prevista lei;
XIII.     Lesão grave dos empresários de tuk-tuks com a decisão constante do despacho
XIV.     O Despacho apresentado pelos autores é falso. O verdadeiro despacho foi o apresentado pela ré.

Consideram-se como não provados, para além da restante factualidade alegada, os seguintes factos que poderiam ser relevantes para a decisão:
I.          O aumento do turismo fundamentado no maior investimento nos tuk-tuks;
II.         A condução agressiva levada a cabo pelos condutores de tuk-tuks;
III.        A ocorrência de acidentes com tuk-tuks;
IV.       O congestionamento do trânsito por circulação dos tuk-tuks;
V.        A degradação urbana causada pela circulação de tuk-tuks.

A convicção do tribunal quanto à matéria de facto provada fundamentou-se na prova documental apresentada e no depoimento das testemunhas. Foi dado particular realce aos seguintes documentos: Gráfico do instituto de Turismo de Portugal (doc. 6 da contestação); fotografias tiradas entre junho de 2013 e maio de 2015 (doc. 7 da contestação); Rota das Papas: Guia para se orientar em Lisboa (doc. 5 da contestação); Edital 317/2015 (doc. 10 da contestação); Estudo sobre os efeitos na saúde provocados pela exposição ao ruído (doc. 8 da contestação); Parecer do Departamento de Alterações Climáticas da Agência Portuguesa do Ambiente sobre a emissão de gases (doc. 3 da petição inicial); Certificate of Evironmental Sustainability of Tuk-tukss (doc. 5 da petição inicial).
Da prova testemunhal salientamos os depoimentos de Telma Correia, Presidente do Conselho Directivo do Instituto de Turismo de Portugal; Ana Paula Neves, técnica investigadora do Instituto de Turismo de Portugal; Farrusco Antunes, Professor no Instituto Superior Técnico – que revelaram conhecimento directo dos factos, tendo deposto com independência e credibilidade.
            2. DO DIREITO
(i)        QUESTÃO PRÉVIA: Da personalidade judiciária
Primeiro de tudo cabe ao tribunal decidir se as autoras têm personalidade judiciária ou não. A Ré invoca que as autoras não têm personalidade jurídica, pois estas não passam de meros grupos informais de empresários e, como tal, não teriam personalidade judiciária e, portanto, não poderiam estar em juízo.
Cabe a este tribunal fazer um breve enquadramento jurídico do regime das associações em Portugal. As associações em Portugal podem ser de dois tipos: associações com personalidade jurídica e sem personalidade jurídica. O primeiro tipo são associações que estão previstas nos artigos 167º e seguintes do Código Civil, e nos termos do nº 1 do artigo 168º do Código Civil são constituídas por escritura publica. A sua personalidade jurídica é adquirida a partir do momento em que a escritura pública é feita. Como é evidente não é o caso em apreço, na medida em que não houve qualquer escritura pública de constituição. O segundo tipo são associações que não têm personalidade jurídica e que se caracterizam por serem grupos informais ao contrário das associações com personalidade jurídica. E este sim é o caso das autoras. Ambas são meros grupos informais que representam os seus associados. Não é por este facto que deixam de ser associações, são é associações sem personalidade jurídica. Estas associações encontram- se reguladas nos artigos 195º e seguintes do Código Civil e caracterizam-se pela falta de personalidade jurídica e pelo facto dos associados poderem vir a responder pelas dívidas desta.
A questão que aqui se coloca é a de saber se pelo facto de as autoras não terem personalidade jurídica não podem estar em juízo, ou seja, se carecem de personalidade judiciária. O que é a personalidade judiciária? É a suscetibilidade de ser parte em juízo tal como resulta do disposto do nº 1 do artigo 8º-A do Código de Processo Administrativo. Assim sendo tem que haver um critério que nos permita descortinar se uma parte possui personalidade judiciária ou não. O legislador no processo civil adotou o critério da equivalência, ou seja, tem personalidade judiciária quem tiver personalidade jurídica nos termos da lei substantiva. Assim sendo temos que olhar para o Código Civil para vermos se uma parte tem ou não personalidade jurídica e consequentemente personalidade judiciária. Como já vimos anteriormente, as autoras não têm personalidade jurídica e, assim sendo, facilmente concluiríamos que não têm personalidade judiciária. No entanto, o legislador não se ficou pelo princípio da equivalência e admitiu que em certos casos pudesse haver uma extensão da personalidade judiciária para entidades que, à partida, não a tinham por não terem personalidade jurídica. O legislador no processo civil previu essa extensão no artigo 12º do Código de Processo Civil. E aqui estão incluídas as associações sem personalidade jurídica como podemos ver na alínea b) do artigo 12º do Código de Processo Civil A questão que agora se coloca é saber se no contencioso administrativo também existe essa extensão. Nos termos do disposto do nº 3 do artigo 8º-A do Código de Processo Administrativo podemos ver que o legislador do contencioso administrativo remete-nos para as extensões previstas no processo civil. Logo, nos termos do nº3 do artigo 8º-A do Código de Processo Administrativo, conjugado com a alínea b) do artigo 12º do Código de Processo Civil, chegamos à conclusão que as autoras têm personalidade judiciária apesar de não terem personalidade jurídica, ou seja, não há aqui nenhuma falta de um pressuposto processual e como tal a pretensão da ré relativamente a esta matéria é rejeitada.

ii)         Do pedido de impugnação
a)         Da competência

Conforme ficou provado, o Despacho apresentado pelos Autores é falso. Com efeito, o verdadeiro Despacho nº 5030 foi apresentado pela Ré (Doc. I).

Nos termos do nº 2 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, cabe à Câmara Municipal a função de entidade gestora em matéria de sinalização, dispondo de competências em matéria de administração do domínio público municipal, designadamente estradal, e respeitante ao estacionamento de veículos nas vias e demais lugares públicos - alíneas qq) e rr) do nº 1 do artigo 33º do Regime Jurídico das Autarquias Locais, aprovado pela Lei nº 75/2013, de 12 de Setembro – competências estas que foram subdelegadas pela Câmara no seu Presidente através da Deliberação nº 235/2015, publicada no 2º Suplemento do Boletim Municipal nº 1103, conforme documento XI junto pela Ré.

Em face do exposto, o Presidente da Câmara Municipal é competente para proferir o Despacho.

b)        Dos vícios substantivos

Vejamos:

As autoras argumentam a violação de três princípios estruturantes do ordenamento jus-administrativo português.

1) No que concerne ao Princípio da Igualdade:

Este tem dois postulados base: a) tratar de forma igual o que é igual, b) tratar de forma diferente o que é diferente na medida da diferença. O princípio não proíbe que a lei estabeleça distinções, proibindo apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material, isto é, apenas determina a proibição do arbítrio. O princípio da igualdade impõe que se trate de forma diferente situações que são diferentes.
Aplicando os normativos em apreço à questão  “sub judice”, temos que não nos parece haver violação do mesmo pelo despacho emanado pela RÉ. Embora tenham de ser tidas em conta as especificidades dos Tuk-tuks ecológicos relativamente aos Tuk-tuks ditos “normais” no que diz respeito à emissão de gases poluentes e ao ruído por eles causado.  
Contudo, olhando à ratio do Despacho, facilmente se concluí que o mesmo foi elaborado com o intuito de fazer decrescer os índices de poluição sonora e as emissões de gases poluentes para a atmosfera, mas também com o de garantir aos moradores das zonas em causa (nomeadamente o Alto Bairro, Alfombra e o Castelinho) uma melhoria da sua qualidade de vida e um ambiente sadio, aliados á segurança dos mesmos.
O Despacho visa limitar: i) a circulação de veículos (desde veículos ligeiros, a ciclomotores e triciclos), ii) o estacionamento abusivo e o iii) o aumento exponencial da circulação de triciclos e ciclomotores verificada nos últimos anos em certas zonas da cidade, que não dispõem das condições necessárias para tal. 
Não se vislumbrando no caso falta de fundamento material bastante para a invalidade do Despacho, o mesmo não viola o Princípio da Igualdade.

 2)  No que concerne à violação do Princípio da Proporcionalidade:

O que é o conteúdo rigoroso da proporcionalidade, textualmente referida na parte final do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, é questão suficientemente tratada pela jurisprudência deste Tribunal.
Com efeito, e como se disse, por exemplo, no Acórdão n.º 888/97 (referido também no Acórdão n.º 174/2012), a ideia de proporção - que, em Estado de Direito, vincula as acções de todos os poderes públicos - refere-se fundamentalmente à necessidade de uma relação equilibrada entre meios e fins: as acções estaduais não devem, para realizar os seus fins, empregar meios, que pelo seu peso, acarretem encargos excessivos (e, portanto, não equilibrados) para as pessoas a quem se destinem. Dizer isto é, no entanto, dizer pouco. Como se escreveu no Acórdão n.º 888/97:
«O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios:
A)        Princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); in casu,  proibir a circulação dos Tuk-tuks nas três zonas indicadas justifica-se pela necessidade de promoção do bem estar, segurança e qualidade de vida da população residente nas zonas em causa, como tal, a medida é adequada.
B)        Princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador, ou neste caso, o poder local, não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato)- No caso “sub judice” não há outra forma de alcançar os fins em vista senão através da proibição da circulação de veículos; 
C)          Princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).»

A esta definição, em quadros gerais, dos três subprincípios, devem por agora ser acrescentadas apenas três precisões.

A primeira diz respeito ao conteúdo exacto a conferir ao terceiro teste enunciado, comummente designado pela jurisprudência e pela doutrina por proporcionalidade em sentido estrito ou critério da justa medida. O que aqui se mede, na verdade, é a relação concretamente existente entre a carga coactiva decorrente da medida adoptada e o peso específico do ganho de interesse público que com tal medida se visa alcançar.

 A segunda precisão a acrescentar é relativa à ordem lógica de aplicação dos três subprincípios, que se devem relacionar entre si segundo uma regra de precedência do mais abstracto perante o mais concreto, ou mais próximo (pelo seu conteúdo) da necessária avaliação das circunstâncias específicas do caso da vida que se aprecia. Quer isto dizer, exactamente, o seguinte: o teste da proporcionalidade inicia-se logicamente com o recurso ao subprincípio da adequação. Nele, apenas se afere se um certo meio é, em abstracto e enquanto meio típico, idóneo ou apto para a realização de um certo fim. A formulação de um juízo negativo acerca da adequação prejudica logicamente a necessidade de aplicação dos outros testes. No entanto, se se não concluir pela inadequação típica do meio ao fim, haverá em seguida que recorrer ao exame da exigibilidade, também conhecido por necessidade de escolha do meio mais benigno.
É este um exame mais «apurado» ou mais próximo das especificidades do caso concreto: através dele se avalia a existência - ou inexistência - , na situação da vida, de várias possibilidades (igualmente idóneas) para a realização do fim pretendido, de forma a que se saiba se, in casu, foi escolhida, como devia, a possibilidade mais benigna ou menos onerosa para os particulares. Caso se chegue à conclusão de que tal não sucedeu - o que é sempre possível, já que pode haver medidas que, embora tidas por adequadas, se não venham a revelar no entanto necessárias ou exigíveis - , fica logicamente prejudicada a inevitabilidade de recurso ao último teste de proporcionalidade.

A terceira precisão a acrescentar relaciona-se com a particular dimensão que não pode deixar de ter o juízo de proporcionalidade (na sua acepção ampla), quando aplicado às decisões do legislador. Afirmou-se atrás que o princípio em causa vale, em Estado de direito, para as acções de todos os poderes públicos. Quer isto dizer que ele se aplicará tanto aos actos da função administrativa quanto aos actos da função legislativa, pois que, em qualquer caso, não pode o Estado (actuando através dos seus diferentes poderes) empregar meios que se revelem inadequados, desnecessários ou não «proporcionais» face aos fins que pretende prosseguir. Certo é, porém, que o poder legislativo se distingue do poder administrativo precisamente pela liberdade que tem para, no quadro da Constituição, eleger as finalidades que hão-de orientar as suas escolhas. - vide também in Verónica Nobre, Manual de Direito Administrativo, Tomo IV, 5ª ed., Coimbra, 2016.

Após o exposto conclui este Tribunal que a restrição imposta pelo Despacho nº5030/2015, não ofende nenhum dos testes que o respeito pelo princípio da proporcionalidade impõe realizar.
Tal restrição é adequada e necessária aos fins concretos que a atuação camarária tem em vista. E além disso é, in casu, a que lesa em menor medida os direitos e interesses das AUTORAS e a única alternativa possível tendo em conta os interesses da comunidade em jogo.

3)         No que concerne à violação do Princípio da Imparcialidade:

O art. 266º, nº 2, da CRP e o art. 6º do CPA sujeitam a Administração Pública, no exercício da sua atividade, ao respeito pelo princípio da imparcialidade.
Este princípio vincula os órgãos da Administração Pública, em especial nas suas relações com os particulares, a agirem com isenção, rectidão, objectividade, neutralidade e equidistância perante os interesses em presença (cf. FREITAS DO AMARAL, Lições, II, p. 204 e segs.)
A transparência é um corolário da imparcialidade e funciona como um seu anteparo ou garantia preventiva, exigindo que a Administração projecte para o exterior uma imagem com aquelas características, de modo a inspirar nos cidadãos um sentimento de confiança (v., sobre ambas as figuras, os Acs. deste Tribunal de 13.2.02, 1.10.03 e proc.ºs nºs 49.424, 47.036 e 1327/03).
Como escreve MARIA TERESA DE MELO RIBEIRO (O Princípio da Imparcialidade da Administração Pública, p. 235), a imparcialidade “constitui, assim, um princípio regulador do conjunto da actividade administrativa e respeita ao exercício e ao desenvolvimento da totalidade da função administrativa, desde a fase de averiguação e determinação dos factos relevantes, até à fase de decisão administrativa, passando pelo inteiro processo de formação da vontade da Administração Pública”.

Tendo em conta os postulados do princípio da imparcialidade e confrontando estes com os factos invocados anteriormente como fundamento da invalidade do Despacho requerido pelas AUTORAS, não é de admitir a susceptibilidade, do ponto de vista do cidadão médio da comunidade onde se insere o poder público, face à motivação apresentada, de ocorrer desconfiança sobre a imparcialidade dos órgãos do poder local, sem razão aparente, ou de ser posta em causa a confiança geral na objectividade das decisões tomadas por estes órgãos no âmbito de poderes vinculados, no processo em que intervieram. Como tal, conclui-se pela não violação do Princípio da Imparcialidade.

c)         Dos vícios procedimentais

QUANTO À ALEGADA PRETERIÇÃO DA AUDIÊNCIA DOS INTERESSADOS

Pode pedir-se a declaração de ilegalidade de normas administrativas, com fundamento em vícios próprios, ou decorrentes da invalidade de atos praticados no âmbito do procedimento de aprovação (art.72º do CPTA).

Quando as autoras impugnam o Despacho n.º 5030/2015, fazem-no ao abrigo da segunda modalidade supra referida, especificamente devido à alegada preterição da fase da audiência dos interessados, formalidade do procedimento onde os interessados têm a oportunidade de participar, de forma ativa, nas decisões em que sejam interessados, exigida pelos artigos 7º e 100º a 103º do C.P.A.

A omissão de audiência previa constitui a preterição de uma formalidade essencial consubstanciada na violação de um direito fundamental (cfr. artigo 267º, nº 5 da C.R.P.), que inquina o respectivo ato final de nulidade.

A Ré invoca, porém, que foi respeitado o princípio constitucional da participação dos cidadãos nas decisões da administração, bem como o art.100º do CPA, por ter alegadamente sido promovida a audição dos interessados através do mecanismo da Consulta Pública, previsto no art.101º do CPA.

E este argumento procede uma vez que os tuk-tuks na cidade de Capital ultrapassam o número de 200, sendo ainda interessados os moradores e os comerciantes, e o art.100º, nº3 do CPA permite que não haja audiência dos interessados quando “o número de interessados seja de tal forma elevado que a audiência se torne incompatível”, “devendo nesse caso proceder-se a consulta pública”.

Seria impraticável a realização da audiência de todos os interessados, levaria a uma morosidade tal que inviabilizaria o processo, a um agravamento complexivo do procedimento decisório, em face da interdependência e multiplicidade das questões que poderiam ser levantadas por aquele número elevado de candidatos.

Nestes termos, o Despacho n.º 5030/2015 não sofre de ilegalidade por violação da exigência de proceder à audiência dos interessados.


iii)        Do pedido de simples apreciação
O pedido de simples apreciação quanto aos seus termos de direito é válido, segundo o previsto nos art. 37º nº 1. alínea g) e art. 39 alínea n) 1, do código de processo  dos tribunais administrativos, na medida em que existe uma situação de incerteza sobre qual a qualificação dos tuk-tuks ecológicos e, tal como alegado pelos Autores, “que pela interpretação meramente literal do normativo, os veículos ecológicos estão abrangidos no seu [do despacho] âmbito” e daí decorreria a adoção de uma conduta lesiva em prole de uma avaliação incorreta.
A proibição de circulação dos tuk-tuks em certas zonas tinha como essencialmente 4 fundamentos: o impacto no ambiente em virtude da poluição de emissão de gases e poluição sonora causada pelo ruido da sua circulação; o congestionamento de trânsito provocado por este tipo de veículos pelo espaço que ocupam em ruas estreitas e pela reduzida velocidade que circulam; problemas de segurança e, por último, “as perturbações a diversos hábitos locais a que estes veículos deram origem”.
Ora, quanto à emissão de gases os réus não contestaram que o fato de os tuk-tuks ecológicos serem movidos a energia elétrica implica a não emissão de gases, não causando assim nenhum problema para o ambiente.
Quanto à emissão de ruido torna-se irrelevante a prova ou não de que os tuk-tuks ecológicos provocam ruido. Segundo o documento 9 apresentado pela contestação, o número de tuk-tuks ecológicos é muito reduzido, não sendo então suscetíveis de causar ruído significante que implique a proibição de circulação em certas zonas.
Em relação aos problemas de trânsito o argumento anterior inviabiliza também a medida do despacho, já que havendo tão poucos tuk-tuks ecológicos não haverá o problema de causar longos congestionamentos. O mesmo argumento vale para o espaço ocupado em ruas estreitas e para suposta perturbação de diversos hábitos locais. Não é a passagem temporária de um número reduzido de tuk-tuks que criará problemas de espaço ou irá perturbar significativamente os hábitos locais. Para além de que não foi criada no tribunal qualquer convicção de perturbação de hábitos locais ou sérios congestionamentos pelos tuk-tuks.
Por fim, quanto ao argumento de segurança, na medida em que são instáveis, que facilmente se desequilibram e oferecem muito pouca proteção em caso de colisão. Este argumento não é lógico para este caso. Estando em causa a proibição de circulação em ruas onde é vedado ou sendo mesmo fisicamente impossível a passagem de um veículo automóvel não se coloca aqui o problema de colisão. Quanto à facilidade de desequilíbrio que possa colocar em causa a integridade física de passageiros e peões, na opinião do tribunal não houve qualquer prova que imputasse essa ideia no nosso juízo e, sendo o ónus da prova do réu, então decidiu-se como não provado.
Em suma, o tribunal considera procedente o pedido de simples apreciação requerido pelos Autores na medida de que os tuk-tuks ecológicos não estão abrangidos pela ratio e propósito do despacho que proíbe a circulação, não sendo então enquadrados na mesma qualificação que os tuk-tuks ditos normais, não só porque um dos maiores argumentos para a emissão do despacho devia-se à poluição ambiental causada pela emissão de gases dos tuk-tuks, algo que não acontece relativamente aos tuk-tuks ecológicos, mas também como prova o documento 9 apresentado pela contestação, existindo em tão pouco número não irão causar ruído, congestionamento ou problemas de segurança suficientemente relevantes para lhes ser vedado o acesso a circular nas zonas objeto do despacho. Não há, no entanto, nenhuma violação do princípio de igualdade como alegam os Autores, apenas se exclui do objeto do despacho os tuk-tuks ecológicos na medida em que não preenchem o fim do despacho nem constituem os problemas que este visa prevenir e resolver.

iv)        Do pedido de condenação:
As autoras alegam que o Despacho em análise originou a perda de clientela e a receita associada correspondente ao período de cinco meses. Assim, invocam a responsabilidade civil da Administração no valor de 100.000€, a título de lucros cessantes e emergentes.
Posto isto, relativamente à Associação dos Empresários Tuk-tuks, tendo em conta que o despacho foi considerado como válido, estes não deverão ser ressarcidos por qualquer dano, dado que não houve qualquer ilegalidade por parte da Administração.

Paralelamente, no que concerne a Associação de Tuk-tuks ecológicos e tendo em conta o decidido no pedido de simples apreciação, entende este Tribunal que a administração deve ser condenada e assim sendo, com base no artigo 7º/1 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, a administração é responsável pelos danos causados pela sua atuação ilícita. Por conseguinte, existe uma obrigação de indemnizar por parte da Ré, sendo que esta deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, conforme o disposto nos termos do artigo 3º nº1 da lei em apreço.  
Relativamente ao montante da indemnização devida pela Ré, este tribunal considera que, tendo em conta o número diminuto de Tuk-tuks ecológicos em circulação e apreciados os balanços e demonstrações financeiras dos empresários em causa, conclui-se que os danos são avaliados em 5.000€.

III. DECISÃO
Por tudo o que foi exposto acordam os juízes do Tribunal Administrativo do Círculo da Capital nos seguintes termos:

i) A legalidade do Despacho 5030/2015;
ii) A sua não aplicabilidade aos tuk-tuks ecológicos;
iii) Condenação da Ré ao pagamento de uma indemnização no valor de 5000€ à Associação de Tuk-tuks ecológicos.

Custas pelos Autores em 80% e da Ré em 20%.

Capital, 13/12/2015            Bárbara Garcia
Beatriz Resina
Duarte Froes
Henrique Soares Santos
Iolanda Dias Magalhães
Isabel Colmonero
Maria Joana Gonçalves
Rita Serra Lopes Pimenta

Verónica Nobre


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