“Em defesa de um Insensato”
O Código
de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) além de conferir legitimidade
processual activa aos titulares da relação controvertida, isto é uma
legitimidade subjectiva baseada no exercício de direitos subjectivos dos
particulares, ainda prevê dois tipos de legitimidade objectiva basicamente como
meio de defesa da legalidade e do bem publico. Coexistem assim juntamente com a
acção das partes, paradigma no actual direito processual, a acção publica e a
acção popular. Pode-se afirmar que o artigo 9º nº2 institui por si o principio
da admissibilidade destes dois tipo de acção no contexto do contencioso
administrativo, uma vez que se trata da norma geral de legitimidade. Deste modo bastaria que o legislador apenas
referisse nos regimes especiais as eventuais excreções, entenda-se, a inexistência
de legitimidade objetiva apenas operaria por derrogação especifica do principio
enunciado. A lei, porem, um pouco à revelia da lógica sistemática opta por estabelecer
expressamente a norma legitimadora do agente público e popular também em sede
da legitimidade especial dos vários tipos de acção. Deste modo, fazem remissão
dieta para o artigo 9º nº2 o artigo 55º, 68, 73nº1, 77nº1 e 77-A nº1, alínea
h) e remissão indirecta o nº 1 do artigo 112º. Acredito que, à semelhança do que
acontece relativamente a outras matéria tratadas neste CPTA, também aqui o
legislador quis aplicar a “pedagogia da repetição” que, apesar de actualmente
pouco em voga no sistema de ensino, continua certamente a ter as suas
vantagens.
Este
princípio é contudo de saudar porque reconhece verdadeiramente a ideia, patente
num verdadeiro sistema administrativo infraestrutural de cooperação entre
agentes públicos e os particulares, de que quando toca ao exercício da função
administrativa todos são potencialmente interessados. A legitimidade objectiva
de “controlo da legalidade” reveste-se assim de novos trajes assumindo ao lado
da legitimidade subjetiva uma incidência multilateral e plurifinalistica,
debruçando-se sobre os diversos “bens públicos” protegidos. Esta fiscalização
universal da actuação administrativa pela sua componente responsabilizadora é
mais um sinal marcante da passagem do “administrado” para o sujeito de direitos
coadministrador. Poderão alguns dizer que o legislador na sua boa vontade se
excedeu ao estender desta forma a legitimidade ativa do ator público e popular,
dando potencialmente origem a soluções descabidas. Tal como seria o caso de alguém
poder pedir a condenação de uma Câmara Municipal á emissão de uma determinada licença
de construção destinada a um terceiro completamente desligado do autor; ou
ainda o de permitir alguém interferir num contrato que é uma relação
estritamente bilateral. Ora aqui parece-me que em causa não está uma questão de
legitimidade processual mas de interesse em agir, este aqui não entendido,
obviamente, como interesse estritamente pessoal mas como consta do nº2 do
artigo 9.º na “defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos”, nomeadamente
os logo a seguir elencados por aquele número do artigo 9.º. Deste modo
dificilmente se poderia admitir uma ação de condenação a prática de ato devido
na situação acima descrita mas já seria admissível num caso de omissão da
distribuição de determinado subsidio destinado a famílias carenciadas da área X
a pedido de uma qualquer IPSS dedicada a essa causa. Seria ainda admissível uma
ação popular interposta, por hipótese por um jurista, requerendo a condenação
da administração à publicitação devida de determinado subsidio europeu
destinado a actividade agrícola. No plano contratual a natureza tendencialmente
bilateral das relações torna difícil a existência de interesse em agir,
especialmente no que diz respeito ao autor popular. No entanto não é impensável
que os bens ou quantias em jogo sejam de tal modo importantes que sejam susceptíveis
de ameaçar ilegalmente os bens e valores referidos. Imagine-se o caso da venda do
Palácio de Queluz ou do Mosteiro dos Jerónimos ou ainda o caso de um contrato
de alto risco de grande volume financeiro que ameasse seriamente o equilíbrio orçamental
da pessoa colectiva publica em causa. Nestes casos e apesar da bilateralidade
das relações os efeitos contratuais afectam necessariamente bens comuns. Outros
casos se poderiam apresentar como exemplos desta relação interesse/legitimidade
relativamente aos outros tipos de ação administrativa mas a lógica usada nos
exemplos dados aplica-se facilmente por maioria de razão a essas realidades.
Conclui-se
assim que existe um princípio da legitimidade objectiva no processo
administrativo que permite controlar a nível dos valores orientadores do bem público
a actuação administrativa sem a existência de uma relação controvertida sentido próprio.
A consagração deste princípio, apesar da duvidosa técnica legislativa, é de se
aplaudir mas tem de ser sempre muito bem conjugado com o interesse em agir sob
pena de se tutelar judicialmente pretensões descabidas. Tenta-se assim como exercício
teórico defender a posição do legislador porventura “insensato” em matéria da
legitimidade objectiva do autor popular e do Ministério Público no contencioso administrativo
da mesma forma que já Gaunilo se insurgira contra o Proslogion de S. Anselmo de
Cantuária, na sua obra “Em defesa do Insensato”, ainda que de uma forma mais
humilde e menos fervorosa da do mestre medieval.
Gonçalo Calheiros Veloso nº 140112059
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