quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

“Em defesa de um Insensato”


O Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) além de conferir legitimidade processual activa aos titulares da relação controvertida, isto é uma legitimidade subjectiva baseada no exercício de direitos subjectivos dos particulares, ainda prevê dois tipos de legitimidade objectiva basicamente como meio de defesa da legalidade e do bem publico. Coexistem assim juntamente com a acção das partes, paradigma no actual direito processual, a acção publica e a acção popular. Pode-se afirmar que o artigo 9º nº2 institui por si o principio da admissibilidade destes dois tipo de acção no contexto do contencioso administrativo, uma vez que se trata da norma geral de legitimidade.  Deste modo bastaria que o legislador apenas referisse nos regimes especiais as eventuais excreções, entenda-se, a inexistência de legitimidade objetiva apenas operaria por derrogação especifica do principio enunciado. A lei, porem, um pouco à revelia da lógica sistemática opta por estabelecer expressamente a norma legitimadora do agente público e popular também em sede da legitimidade especial dos vários tipos de acção. Deste modo, fazem remissão dieta para o artigo 9º nº2 o artigo 55º, 68, 73nº1, 77nº1 e 77-A nº1, alínea h) e remissão indirecta o nº 1 do artigo 112º. Acredito que, à semelhança do que acontece relativamente a outras matéria tratadas neste CPTA, também aqui o legislador quis aplicar a “pedagogia da repetição” que, apesar de actualmente pouco em voga no sistema de ensino, continua certamente a ter as suas vantagens.  
Este princípio é contudo de saudar porque reconhece verdadeiramente a ideia, patente num verdadeiro sistema administrativo infraestrutural de cooperação entre agentes públicos e os particulares, de que quando toca ao exercício da função administrativa todos são potencialmente interessados. A legitimidade objectiva de “controlo da legalidade” reveste-se assim de novos trajes assumindo ao lado da legitimidade subjetiva uma incidência multilateral e plurifinalistica, debruçando-se sobre os diversos “bens públicos” protegidos. Esta fiscalização universal da actuação administrativa pela sua componente responsabilizadora é mais um sinal marcante da passagem do “administrado” para o sujeito de direitos coadministrador. Poderão alguns dizer que o legislador na sua boa vontade se excedeu ao estender desta forma a legitimidade ativa do ator público e popular, dando potencialmente origem a soluções descabidas. Tal como seria o caso de alguém poder pedir a condenação de uma Câmara Municipal á emissão de uma determinada licença de construção destinada a um terceiro completamente desligado do autor; ou ainda o de permitir alguém interferir num contrato que é uma relação estritamente bilateral. Ora aqui parece-me que em causa não está uma questão de legitimidade processual mas de interesse em agir, este aqui não entendido, obviamente, como interesse estritamente pessoal mas como consta do nº2 do artigo 9.º na “defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos”, nomeadamente os logo a seguir elencados por aquele número do artigo 9.º. Deste modo dificilmente se poderia admitir uma ação de condenação a prática de ato devido na situação acima descrita mas já seria admissível num caso de omissão da distribuição de determinado subsidio destinado a famílias carenciadas da área X a pedido de uma qualquer IPSS dedicada a essa causa. Seria ainda admissível uma ação popular interposta, por hipótese por um jurista, requerendo a condenação da administração à publicitação devida de determinado subsidio europeu destinado a actividade agrícola. No plano contratual a natureza tendencialmente bilateral das relações torna difícil a existência de interesse em agir, especialmente no que diz respeito ao autor popular. No entanto não é impensável que os bens ou quantias em jogo sejam de tal modo importantes que sejam susceptíveis de ameaçar ilegalmente os bens e valores referidos. Imagine-se o caso da venda do Palácio de Queluz ou do Mosteiro dos Jerónimos ou ainda o caso de um contrato de alto risco de grande volume financeiro que ameasse seriamente o equilíbrio orçamental da pessoa colectiva publica em causa. Nestes casos e apesar da bilateralidade das relações os efeitos contratuais afectam necessariamente bens comuns. Outros casos se poderiam apresentar como exemplos desta relação interesse/legitimidade relativamente aos outros tipos de ação administrativa mas a lógica usada nos exemplos dados aplica-se facilmente por maioria de razão a essas realidades.
Conclui-se assim que existe um princípio da legitimidade objectiva no processo administrativo que permite controlar a nível dos valores orientadores do bem público a actuação administrativa sem a existência de uma relação controvertida sentido próprio. A consagração deste princípio, apesar da duvidosa técnica legislativa, é de se aplaudir mas tem de ser sempre muito bem conjugado com o interesse em agir sob pena de se tutelar judicialmente pretensões descabidas. Tenta-se assim como exercício teórico defender a posição do legislador porventura “insensato” em matéria da legitimidade objectiva do autor popular e do Ministério Público no contencioso administrativo da mesma forma que já Gaunilo se insurgira contra o Proslogion de S. Anselmo de Cantuária, na sua obra “Em defesa do Insensato”, ainda que de uma forma mais humilde e menos fervorosa da do mestre medieval.     

Gonçalo Calheiros Veloso nº 140112059

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