Aconteceu
quando a proteção cautelar no Processo Administrativo era ainda jovem em
Portugal. Tinha 6 anos. Chegou apenas em 2000 ao nosso Contencioso Administrativo,
mas a tempo de garantir a proteção dos direitos dos moradores do afamado Prédio
Coutinho, em Viana do Castelo. Não tivessem os particulares moradores,
principais interessados, recorrido à figura da providência cautelar, já há muito
que a Administração Pública teria executado a decisão administrativa de
declarar o imóvel de utilidade pública, expropriando-o totalmente e demolindo o
edifício. Isto, independentemente da decisão final dos tribunais,
Administrativos e Constitucional, em relação à ação principal, ou seja, ao
pedido de nulidade da declaração de Utilidade Pública para a expropriação das
frações.
É uma longa
história, sobre um longo edifício e uma longa caminhada do Contencioso
Administrativo que esbarrou a tempo com o fenómeno da europeização.
Mas vamos
por partes:
O Prédio Coutinho
tem sido repetidamente notícia desde 2005 na comunicação social. É um edifício
de 13 andares, com 105 frações e onde viviam cerca de 300 pessoas. Construído
nos anos 70, bem no coração da cidade de Viana do Castelo. Se fosse em Lisboa,
ou mesmo no Porto, provavelmente seria mais um, longo em altura, e ninguém
quase daria por ele. Mas foi construído numa cidade relativamente pequena, num
local onde urbanisticamente aquele prédio se destaca, mesmo junto à margem do
rio Lima. Há mesmo quem lhe chame um “aborto arquitetónico” e quem levante
sérias dúvidas acerca da legalidade do processo de licença de construção concluído
pela Câmara Municipal.
O problema é que nos anos 70 o urbanismo era mais uma
variante dos interesses difusos que pouco ou nada relevava, ao contrário do que
acontece hoje em dia em que esses interesses são extremamente importantes.
No início
deste novo século, a “bomba” que poderá ainda vir a deitar por terra o Prédio Coutinho
começou a ser fabricada: a decisão administrativa de Declaração de Utilidade
Pública para a expropriação e demolição. A 16 de Agosto de 2005 foi publicada em Diário da República
a dita declaração.
É verdade
que as tentativas do município em fazer desaparecer o prédio já foram algumas
desde 1975, mas também é verdade que nunca foram avante por razões económicas,
já que a implosão fica cara ao erário público e já que, até 2005, as razões da
estética, do urbanismo, pesaram sempre menos do que as razões económicas. Ainda
hoje é uma questão polémica tendo em conta o interesse público em causa que
deve ser de facto atendido: se o interesse de todos por razões estéticas, se o
interesse daqueles particulares que têm direito a querer ficar com a sua morada
de família que adquiriram de boa fé (alguns são moradores desde que o prédio
existe), ou até mesmo o interesse público de não se gastar tanto dinheiro
(alguns milhões de euros) na implosão de um edifício, há tantos anos de pé, e
aplicar essas verbas noutro tipo de obras mais relevantes para a população da
cidade.
A Sociedade Viana Pólis, empresa pública cujas quotas são
divididas pelo Ministério do Ambiente e pela Câmara Municipal de Viana do Castelo
tem funções específicas neste processo do Prédio Coutinho: tratar da expropriação, das
indemnizações aos particulares que ficariam sem casa e negociar com eles uma
solução de realojamento noutra zona da cidade, em habitações municipais que
entretanto foram construídas de raiz para esse efeito.
Alguns
desses moradores aceitaram a bem a expropriação da respetiva fração e a devida
indemnização e realojamento. Outros não e esses outros reagiram juridicamente,
num litigio de natureza administrativa contra a Administração Pública.
Superaram-se alguns dos «traumas da infância difícil do Direito Administrativo»,
como Vasco Pereira da Silva costuma dizer, e os particulares e a Administração Pública
vão a juízo como partes iguais, sujeitos de uma relação jurídica
administrativa, em que está em causa sobretudo o exercício da função
administrativa, não havendo nesta relação de conflito jurídico qualquer
privilégio da Administração. Felizmente.
Nesta parte
da história entra o que Fausto Quadros chama como «instrumento mais importante
da europeização» do Direito Administrativo: as providências cautelares.
Se ainda
hoje o Prédio Coutinho, melhor ou pior, está de pé, isso deve-se exclusivamente
à reação dos particulares afetados pela decisão de um órgão da Administração
Pública, neste caso Administração Autónoma, em expropriar e demolir o edifício.
Puderam reagir a tempo, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que
lhes deu provimento às providências cautelares interpostas.
O objetivo
era evitar que a AP executasse a decisão administrativa e, depois, mesmo que a
sentença final da ação principal, mesmo em última instância, lhes fosse
favorável, já de nada adiantaria. Seria tarde, porque o bem e os direitos dos
particulares já tinham sido irreversivelmente afetados. Citando J.
Morand-Deviller, uma situação inadmissível do ponto de vista da equidade, em
que o facto consumado levava a melhor sobre a autoridade do caso julgado.
Mas a
mudança de paradigma do contencioso Administrativo português, como refere Vasco
Pereira da Silva, está agora voltada para a proteção plena e efetiva dos
direitos dos particulares. Foi criado na reforma do Contencioso Administrativo
de 2000 um regime para as situações de urgência, confiado este aos tribunais de
primeira instância. A ideia foi fruto da europeização, fenómeno que afetou e
afeta até hoje o nosso Direito Administrativo, para que se oferecessem aos
administrados garantias equivalentes às do processo civil. E este regime para a
urgência envolve três processos cautelares: de suspensão, que conduz à
suspensão da eficácia mas num regime mais aberto do que anteriormente,
tornando-se a regra, como diz Fromont, sempre que o requerente merece proteção;
o processo de injunção, que é afinal um meio completamente original que vem
atribuir mais poderes ao juiz, a um único juiz, para dar ordenas à AP numa
situação rápida; e o processo de conservação, que no domínio do plano
pré-contratual «atribui amplos poderes de intervenção ao tribunal», de acordo
com Vasco Pereira da Silva.
Neste caso
do Prédio Coutinho, preencheram-se os pressupostos da urgência e da dúvida
séria quanto à legalidade da decisão administrativa de expropriar e demolir
propriedade privada. Os particulares requereram ao tribunal de 1ª instancia a
suspensão da eficácia e o Juiz garantiu-lhes esse direito.
Hoje o Prédio
Coutinho ainda está de pé. Já lá vão mais de 10 anos de litígio nos tribunais. Bateu
todas as instâncias e em 2014 o Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se
de forma favorável à Administração, dando luz verde à decisão administrativa de Declaração de utilidade pública do imóvel e
consequente execução. Ou seja, não considerou que no processo houvesse causa de
anulação da decisão e que estavam por isso justificadas a expropriação e a demolição.
Não deu razão ao pedido dos particulares, fazendo antever assim o fim trágico
do arranha-céus de Viana do Castelo.
O que, de resto, ainda só não aconteceu
desde 2005, primeiro: devido às providências cautelares interpostas, e ao seu
efeito eficaz de suspensão da decisão da AP; segundo: porque apesar de haver já
decisão da última instância, do Supremo Tribunal Administrativo, os
particulares recorreram entretanto para o Tribunal Constitucional, ação que foi
admitida e com efeito suspensivo.
Ou seja, até
ao dia de hoje e passados quase 11 anos, o Prédio Coutinho mantém-se. Alto, em
altura e em valor atribuído à ação cautelar. Como uma autêntica “coroa de
glória” da tutela cautelar do Direito Administrativo Português.
Maria Helena Silva da Fonseca
Aluna nº 140112507