1. Período do Pecado
Original (1789 – início do séc. XX)
Em 1789, com a Revolução Francesa e com a
proibição dos tribunais comuns de interferirem, surge o juiz doméstico, o
juiz privativo da Administração. Este surgimento é negativo não só pela
questão traumática em si mesma, mas pelo facto de a Administração que executa
a lei, o faz como entender, porque o faz por si mesma.
O pecado original era pois o da ligação da
Administração à Justiça – sistema do administrador/juiz, em que o
administrador é juiz e o juiz é administrador.
Este primeiro período vai afirmar-se com o
desenvolvimento do Estado Liberal, sobretudo no Continente Europeu, e durará
até à transição do século XIX para o século XX.
No quadro continental a separação de
poderes é oriunda da concepção de Montesquieu, que é diferente da de Locke.
A separação de poderes como Montesquieu a concebe, é uma separação de
poderes do Estado. Se os poderes administrativo, legislativo e judicial são do
Estado, então, considera, são iguais. Em Inglaterra não houve a proibição
dos tribunais comuns controlarem a Administração, o que vai originar uma
dimensão diferente do Direito Administrativo, que é relativamente diferente
nesta fase originária. É que no Reino Unido, teoricamente, os tribunais
comuns podem controlar a Administração, e aplicando o direito comum. Não
quer isto dizer que não vai surgir um direito especial para a Administração,
mas apenas que surgirá mais tarde.
Surge então a distinção entre administraive
courts e administrative tribunals, havendo então substanciais diferenças com
a situação francesa, diferenças essas que se esbaterão no momento do
baptismo.
O facto de reconduzirmos o poder
administrativo, tal como o poder judicial ao Estado, vem criar fortes marcas.
Prova disso é o facto de, até 2004, os actos do Primeiro Ministro, e outros,
serem imediatamente julgados no Supremo Tribunal Administrativo.
O que marca a diferença entre a história
francesa e a história britânica é o medo. É que os revolucionários
franceses temiam os tribunais, e pretendiam controlar as suas decisões, sendo
o juiz “a boca que pronuncia o Direito”. Assim era pois por trás dos juízes
estavam os aristocratas e os representantes do Antigo Regime. Quando Luís XIV
quis combater o poder dos tribunais criou o Conselho do Rei, que o auxiliava
nas suas decisões e julgava as suas decisões; hoje é chamado Conselho de
Estado. Quer isto dizer que o que foi feito como sendo novo e revolucionário
é apenas uma perpetuação do Antigo Regime. Se olharmos para o que se passa a
partir de 1789 com Napoleão Bonaparte, vemos que é esta lógica do Conselho
de Estado, que é hoje o órgão jurisdicional francês, que, contudo, já é
hoje distinto e independente da Administração.
A realidade do modelo do Pecado Original já
existe antes da Revolução, mas correm depois três momentos no sistema deste
Pecado que marcam três subperíodos da evolução do sistema:
1.1. 1789/1799
Estamos perante um momento de total
promiscuidade entre Administração e Função Jurisdicional.
1.2. 1799/1873 –
Conselho de Estado
Aqui surge um órgão estranho, um Conselho
de Estado, a julgar. Ainda assim, era ainda um sistema de justiça reservada,
pois o Conselho de Estado era não só um órgão da Administração, como
apenas emitia pareceres que careciam de homologação pelos Chefes de Estado,
cabendo a última palavra à Administração.
1.3. 1873/1889
O Conselho de Estado foi ganhando autonomia,
até que os seus pareceres se tornam decisões definitivas – sistema da
justiça delegada. Isto significa que, nesta altura, temos uma transformação
do sistema, sem ainda “a” mudança do sistema. É que, desde logo, continua a
não haver distinção entre administrar e julgar, pois o Conselho de Estado
continua a ser um órgão administrativo que acumula duas funções, exercidas
indistintivamente.
Em segundo lugar, quando se fala em
delegação de competências, estamos perante um órgão administrativo em que
um confere a outro a competência para decidir, mas tratam- se de dois órgãos
administrativos. Estamos perante o sistema do ministro-juiz. Em suma, podemos
dizer que este modelo se afirmou com o surgimento do Estado Liberal de Direito
e, a partir de determinada altura, o que vai suceder é que, à imagem da
França, as sucessivas revoluções liberais vão instaurar um sistema próximo
do francês. Em Portugal, 1832, será a Lei de Mouzinho da Silveira, que vai
dar à origem da criação de um Conselho de Estado encarregue do julgamento da
actividade administrativa. O que se passou foi que as revoluções liberais
adoptaram este modelo.
Curiosamente, os modelos liberais alemães
vão contestar o modelo francês. Talvez por isso a ideia de um modelo
alternativo surge muito cedo, e ligado ao liberalismo político. Isto
precisamente porque quem adoptou o modelo não foi o Estado Liberal e seus
defensores, mas seguidores de outras manifestações política que o visavam
atingir.
Podemos dizer que este modelo acompanhou o
Estado Liberal, mesmo que não seu específico. No que corresponde ao
liberalismo político, o modelo de Direito Administrativo e de Contencioso
Administrativo, tinha uma componente autoritária. Só que as coisas
alteraram-se, e esta alteração, em França foi acontecendo gradualmente.
Vimos que em 1989 houve então o chamado Acórdão Cadot que pôs termo ao
sistema do ministro-juiz. A partir daqui há uma ordem gradualista em que o
Conselho de Estado vai ganhando autonomia, que vai sendo reconhecida. À medida
que vai julgando os litígios, o Conselho de Estado vai emitindo sentenças
cada vez mais autónomas e independentes, e assume-se como verdadeiro tribunal.
O que vai acontecendo paulatinamente é que a
secção contenciosa se autonomiza da secção administrativa, e funciona como
verdadeiro Tribunal. Na secção administrativa há administradores, e na
secção contenciosa estão os juízes que julgam a administração, sem que
houvesse circulação entre um e outro órgão.
Em suma, houve uma autonomização gradual e
progressiva que foi reconhecida pelo legislador, que vai, por exemplo, criar
tribunais de 1a instância.
Em França aconteceu assim, mas, em Portugal,
a Constituição de 1983 foi a primeira a integrar os tribunais administrativos
na função jurisdicional. Do ponto de vista da nossa realidade, a
Administração concordava com o juiz e executava a sentença, e, se não
concordava, não executava. Assim, até que surja, como aconteceu em 1977, um
sistema que permita executar, que permita que os particulares que estão
perante uma sentença incumprida, obtenham seu cumprimento, só a partir daí
é que estamos perante um verdadeiro tribunal.
Nos outros países foi mais cedo, mas,
curiosamente, até se atingir o período seguinte, até se atingir o período
da Confirmação, o Contencioso Administrativo continuará a ser entendido de
forma limitada: naquilo que corresponde ao âmbito de aplicação; juízes não
gozavam de plenitude de poderes face à Administração.
O último subperíodo (1873/1889) é o que
vai marcar o modelo futuro do Contencioso Administrativo na lógica do quadro
liberal. Dizia-se, nesta altura e em primeiro lugar que o ministro-juiz era um
órgão do poder administrativo, e que havia uma lógica do exercício do
quadro jurisdicional, em que o Ministro é a primeira instância do
Contencioso. Depois, recorrer-se-ia da sua decisão par ao Conselho de Estado.
Isto trará como consequência, desde logo, a regra de que haja uma decisão
prévia de um Ministro, antes que um Tribunal possa decidir (recurso
hierárquico necessário). A ideia do recurso marcará a justiça
administrativa, a ponto de ainda hoje se falar em França em tal recurso; mesmo
em Portugal, até 1985, o meio processual era o recurso directo de anulação.
A ideia do recurso directo de anulação como meio processual em que o juiz
apenas tem poderes de anulação de actos administrativos é algo que remonta a
este momento do ministro-juiz.
A lógica hoje é que o juiz olha para o
acto, e, se insatisfeito com o que foi trazido, pode suscitar outros meios de
prova. Hoje, é uma acção, mas, antes, era considerado recurso.
Os liberais entendiam que, quanto menos o
Estado interviesse, melhor. A lógica da mão invisível partia do princípio
de que o Estado não tinha funções activas e, nessa perspectiva, o que cabia
à Administração Pública fazer era garantir a segurança, liberdade e
propriedade, exercendo a função de polícia. Daí que o modelo de Estado
Liberal é um de Administração Polícia. Assim, os liberais nunca se preocuparam
muito com o poder administrativo; a sua preocupação nunca foi na lógica do
controle, mas na teorização do princípio da legalidade que significava que a
Administração estava subordinada às regras do Parlamento.
O Estado Liberal tem uma dimensão viril,
autoritária, dos seus pais, de Robes e Rousseau, e uma dimensão materna, de
Lockes e Montesquieu, que é da separação de poderes. Os liberais não se
preocupavam com o reconhecimento de direitos em face do Estado, uma vez que um
indivíduo era sujeito de poder, e não de direito.
Ottomayer, um dos pais do Direito
Administrativo, dizia ser inconcebível imaginar um direito do cidadão em
relação ao Estado, pois tal significava reconhecer ao indivíduo uma
situação de superioridade em relação ao Estado.
Isto levará a um Direito Administrativo
concebido de forma autoritária, com actos que impõem comportamentos a
particulares e executam essa posição, mesmo contra a vontade do particular. A
teoria do acto administrativo, utilizada por Ottomayer e por Hauriou, é uma de
acto autoritário. É que o definem como aquele que é igual a uma sentença
que define o direito aplicável ao particular, no acto concreto.
Tal como as sentenças judiciais são
obrigatórias, também os actos administrativos seriam executórios. Esta ideia
autoritária do poder, da força, é ainda mais visível em Hauriou, que partia
da comparação do acto com o negócio jurídico, pois correspondia ao
exercício de poderes exorbitantes da Administração – outro trauma da
Administração.
Este é o modelo acto-cêntrico do Direito
Administrativo. O particular que ia a juízo, não ia para defender nenhum
direito, mas antes para defender a legalidade do interesse público; o
particular era um bom escuteiro que vem ajudar o juiz na legalidade do
interesse público. O processo administrativo era objectivo, no sentido em que
o objecto do litígio era uma realidade objectiva, um acto, um interesse
público, independentemente das pessoas afectadas por ele.
2. Período do Baptismo
Neste momento há uma jurisdicionalização
ou judicialização/tribunalização da justiça administrativa. Ainda que com
a instauração do Estado Social, os tribunais administrativos se tornem
verdadeiros tribunais, este momento entrará em crise, com consequente
transformação do contencioso que consta na superação de alguns dos seus
traumas de infância.
Uma mudança vai surgir com a mudança do
Estado Liberal para o Estado Social, quando surgem regras sobre a intervenção
do Estado e a Providência Social. Neste momento, a função das funções
será a administrativa, daí se dizer que o Estado Social é um Estado de
Administração. Em simultâneo com esta transformação, há uma outra que vai
surgindo de forma mais ou menos evidente e que vai levar à passagem do Pecado
Original para o Baptismo.
Este Baptismo, na realidade francesa, vai
acontecendo. Num primeiro momento temos o Acórdão Blanco, de 1872. Vimos que
a justiça delegada significava que o Contencioso continuava nas mãos da
Administração e implicava a manutenção do sistema administrador- juiz. A
partir de 1889, com o Acórdão Cadot, põe-se termo a esta teoria, e diz-se
que o ministro é uma entidade administrativa, e o juiz uma entidade
jurisdicional. O afastamento da teoria ministro-juiz é um dos primeiros
momentos de afirmação jurisdicional do Conselho de Estado.
A melhor explicação para o Contencioso
Administrativo é a ideia do milagre. O Conselho de Estado foi ganhando
autonomia e, como tal, foi-lhe atribuído um estatuto de independência,
ficando igual à dos tribunais. O milagre por detrás deste acontecimento é o
da Administração se ter obrigado a subordinar-se ao Direito –
auto-vinculação da Administração às regras jurídicas do Estado. Mas o
Estado não é o dono do Direito mas antes um dos produtores de normas
jurídicas. O que está em causa não tem a ver com uma realidade em que o
Estado é dono do Direito, mas em que o Direito é uma realidade material em
relação ao qual o Estado é apenas um sujeito de Direito.
Ao longo de todo o século XX francês, vão
surgindo regras que visam consolidar a posição jurisdicional do Conselho do
Estado, tais como as que criam tribunais administrativos logo na 1a instância.
Há regras relativamente à execução das sentenças, de meios processuais
provisórios, entre outras.
Será nesta altura que o Estado assume novas
funções, nomeadamente a partir da Administração Pública. Na sequência de
grandes crises que aconteceram nos finais do século XIX, início do século
XX, o Estado chama novas intervenções que passam a criar também novos
litígios.
Este período do Estado Social vai contribuir
para a aproximação do sistema francês com o sistema anglo-saxónico. De
alguma maneira podia dizer-se que, em relação a um liberalismo político, no
quadro da realidade britânica, quem julgava a Administração eram os
tribunais comuns, aplicando o direito comum. Este era o sistema nos paradigmas
clássicos; no entanto, mesmo em Inglaterra já existia alguma tendência para
proteger a Administração, porque julgávamos que os órgãos administrativos
especiais tinham sido criados a partir do século XX, mas já havia nos
séculos XIX e XVIII. Portanto, encontramos um paradigma que corresponde a um
modelo originário de organização de justiça administrativa.
Esta realidade vai começar a mudar nos
finais do século XIX, onde surgem novas regras, como as regras laborais ou
sobe a Providência da Segurança Social. Portanto, esta realidade fará com
que, no Reino Unido, surja Direito Administrativo. Olhando para as faculdades
britânicas, nomeadamente para a London School of Economic, a partir de 1920 há
uma disciplina jurídica chamada Direito Administrativo. Quer isto dizer que a
ideia originária de que em Inglaterra não havia Direito Administrativo, é
posta em causa.
Também se dizia que não havia Direito
Administrativo, porque eram os tribunais comuns a julgar. Acontece que iremos
verificar o aparecimento de órgãos chamados tribunals, órgãos
administrativos especiais, que são realidades de um Contencioso especial,
nascido da Administração e que, de alguma maneira, contribui para a proteger.
Curiosamente estes tribunals têm outros poderes, pois ganham poderes de
execução. Portanto a característica dos actos administrativos da
auto-execução e susceptibilidade de execução coativa, estes tribunals vão
ganhar. Tudo mostra uma primeira aproximação destes dois sistemas que surge
até contraciclo, pois é o momento em que no sistema francês há uma
jurisdicionalização, aparece, em Inglaterra, um movimento contra essa.
Também sabemos agora que, para além destes tribunals,
vai surgir um verdadeiro tribunal administrativo – Administrative Court – que
conduz a uma ideia de especialização jurisdicional no quadro da 1a instância
do Contencioso Administrativo.
Esta realidade mostra como os problemas por
que passa o Direito Administrativo e o Contencioso Administrativo são os
mesmos em vários países, e as soluções são também as mesmas, ainda que em
tempos diferentes.
Se foi assim na altura do Estado Social, nos
dias de hoje, a partir da Constituição Alemã de 1949 e, sobretudo, a partir
das Constituições de 1970, chegamos a um novo período:
3. O
crisma do Contencioso Administrativo:
A
partir de 1976: Modelo judicial em que se procura a criação de uma ordem de
tribunais administrativos. Nesta fase altera-se o modelo processual de forma
gradual com as várias revisões constitucionais. Em 1976 com o estabelecimento dos Direitos Fundamentais e
respectivo regime resultou que os tribunais administrativos eram verdadeiros
tribunais, todavia manteve-se o recurso contencioso de anulação. Em 1977 o DL 356-A/1977 estabelece
que caso a AP não se pronunciasse se tinha o silêncio como indeferimento
tácito, acto que poderia ser impugnado judicialmente. Veio ainda exigir a
fundamentação dos actos desfavoráveis para os particulares e reformar o regime
de execução de sentenças (possibilidade de se declararem os actos devidos em
sentença). Em 1982 com a
revisão constitucional alterou-se o art.º 269 que passa a 268 no qual se alarga
o âmbito da jurisdição administrativa, acentuando a subjectivização do processo
com uma nova acção em que se pede ao tribunal o reconhecimento de direitos
subjectivos e interesses legalmente protegidos (tutela directa das posições
subjectivas dos particulares) e se exige notificação dos actos. Em 1984/1985 existe uma grande
reforma do sistema administrativo com a consagração no Estatuto do STA e na Lei
do Processo dos Tribunais Administrativos de novos meios processuais (pedido de
declaração de ilegalidade de normas e acção para o reconhecimento de direitos),
previu ainda a possibilidade de existência de acções não especificadas. Visou
uniformizar a tramitação dos recursos contenciosos, eliminar limitações
escandalosas aos direitos dos particulares, estabelecer novos meios acessórios,
intensificar os poderes do juiz administrativo. Em 1989 com a revisão constitucional que alterou o art.º 267
visando eliminar a exigência de acto definitivo e decisório (introdução de um
novo critério) como requisito de recorribilidade, todavia parte da doutrina
continuava a defender que era necessário o acto ter eficácia externa.
Implementou ainda o princípio do favorecimento do processo, alargou ainda o
pedido de reconhecimento de um direito e permitiu que o juiz controlasse mais
eficazmente os poderes discricionários através dos princípios constitucionais.
Em 1997 com a revisão
constitucional confirma-se as alterações de 1989, e visa-se aprofundar a tutela
dos particulares (princípio da tutela jurisdicional efectiva). Em 2002 existe outra grande
reforma da legislação ordinária que opera a mudança total do contencioso
administrativo. A nível do ETAF (art.ºs 1 e 4) veio alargar-se o âmbito da
jurisdição administrativa (contratos e responsabilidade civil). Consagrou
expressamente a tutela jurisdicional efectiva no art.º 2 ETAF, criou dois tipos
de acções, a acção administrativa comum – pedidos na linha do reconhecimento de
direitos e quanto a contratos e responsabilidade – e a acção administrativa
especial – pensada para as actuações da AP – (acções guarda chuva). A acção
comum remete para o regime de processo civil e a acção especial segue o regime
específico administrativo. Admitiu-se amplamente a cumulação de pedidos (art.º
4 e 47 do CPTA). A tramitação da acção administrativa especial não distingue a
Administração central da local. Estabelecimento de meios principais urgentes
(acções). Conceito muito mais vasto de legitimidade para a impugnação de actos
administrativos. Reconhecimento do papel relevante do MP. Estabelecimento do
princípio de igualdade de armas. Alargamento substancial das providências cautelares.
Regulamentação do processo executivo no âmbito do contencioso (sentenças
substitutivas e sanções pecuniárias compulsórias).
Mariana Garcia - 140111010
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