domingo, 13 de dezembro de 2015

Recapitulação: Evolução Histórica do Modelo Processual Português


1. Período do Pecado Original (1789 – início do séc. XX)
Em 1789, com a Revolução Francesa e com a proibição dos tribunais comuns de interferirem, surge o juiz doméstico, o juiz privativo da Administração. Este surgimento é negativo não só pela questão traumática em si mesma, mas pelo facto de a Administração que executa a lei, o faz como entender, porque o faz por si mesma.
O pecado original era pois o da ligação da Administração à Justiça – sistema do administrador/juiz, em que o administrador é juiz e o juiz é administrador.
Este primeiro período vai afirmar-se com o desenvolvimento do Estado Liberal, sobretudo no Continente Europeu, e durará até à transição do século XIX para o século XX.
No quadro continental a separação de poderes é oriunda da concepção de Montesquieu, que é diferente da de Locke. A separação de poderes como Montesquieu a concebe, é uma separação de poderes do Estado. Se os poderes administrativo, legislativo e judicial são do Estado, então, considera, são iguais. Em Inglaterra não houve a proibição dos tribunais comuns controlarem a Administração, o que vai originar uma dimensão diferente do Direito Administrativo, que é relativamente diferente nesta fase originária. É que no Reino Unido, teoricamente, os tribunais comuns podem controlar a Administração, e aplicando o direito comum. Não quer isto dizer que não vai surgir um direito especial para a Administração, mas apenas que surgirá mais tarde.
Surge então a distinção entre administraive courts e administrative tribunals, havendo então substanciais diferenças com a situação francesa, diferenças essas que se esbaterão no momento do baptismo.
O facto de reconduzirmos o poder administrativo, tal como o poder judicial ao Estado, vem criar fortes marcas. Prova disso é o facto de, até 2004, os actos do Primeiro Ministro, e outros, serem imediatamente julgados no Supremo Tribunal Administrativo.
O que marca a diferença entre a história francesa e a história britânica é o medo. É que os revolucionários franceses temiam os tribunais, e pretendiam controlar as suas decisões, sendo o juiz “a boca que pronuncia o Direito”. Assim era pois por trás dos juízes estavam os aristocratas e os representantes do Antigo Regime. Quando Luís XIV quis combater o poder dos tribunais criou o Conselho do Rei, que o auxiliava nas suas decisões e julgava as suas decisões; hoje é chamado Conselho de Estado. Quer isto dizer que o que foi feito como sendo novo e revolucionário é apenas uma perpetuação do Antigo Regime. Se olharmos para o que se passa a partir de 1789 com Napoleão Bonaparte, vemos que é esta lógica do Conselho de Estado, que é hoje o órgão jurisdicional francês, que, contudo, já é hoje distinto e independente da Administração.
A realidade do modelo do Pecado Original já existe antes da Revolução, mas correm depois três momentos no sistema deste Pecado que marcam três subperíodos da evolução do sistema:
1.1. 1789/1799
Estamos perante um momento de total promiscuidade entre Administração e Função Jurisdicional.
1.2. 1799/1873 – Conselho de Estado
Aqui surge um órgão estranho, um Conselho de Estado, a julgar. Ainda assim, era ainda um sistema de justiça reservada, pois o Conselho de Estado era não só um órgão da Administração, como apenas emitia pareceres que careciam de homologação pelos Chefes de Estado, cabendo a última palavra à Administração.
1.3. 1873/1889
O Conselho de Estado foi ganhando autonomia, até que os seus pareceres se tornam decisões definitivas – sistema da justiça delegada. Isto significa que, nesta altura, temos uma transformação do sistema, sem ainda “a” mudança do sistema. É que, desde logo, continua a não haver distinção entre administrar e julgar, pois o Conselho de Estado continua a ser um órgão administrativo que acumula duas funções, exercidas indistintivamente.
Em segundo lugar, quando se fala em delegação de competências, estamos perante um órgão administrativo em que um confere a outro a competência para decidir, mas tratam- se de dois órgãos administrativos. Estamos perante o sistema do ministro-juiz. Em suma, podemos dizer que este modelo se afirmou com o surgimento do Estado Liberal de Direito e, a partir de determinada altura, o que vai suceder é que, à imagem da França, as sucessivas revoluções liberais vão instaurar um sistema próximo do francês. Em Portugal, 1832, será a Lei de Mouzinho da Silveira, que vai dar à origem da criação de um Conselho de Estado encarregue do julgamento da actividade administrativa. O que se passou foi que as revoluções liberais adoptaram este modelo.
Curiosamente, os modelos liberais alemães vão contestar o modelo francês. Talvez por isso a ideia de um modelo alternativo surge muito cedo, e ligado ao liberalismo político. Isto precisamente porque quem adoptou o modelo não foi o Estado Liberal e seus defensores, mas seguidores de outras manifestações política que o visavam atingir.
Podemos dizer que este modelo acompanhou o Estado Liberal, mesmo que não seu específico. No que corresponde ao liberalismo político, o modelo de Direito Administrativo e de Contencioso Administrativo, tinha uma componente autoritária. Só que as coisas alteraram-se, e esta alteração, em França foi acontecendo gradualmente. Vimos que em 1989 houve então o chamado Acórdão Cadot que pôs termo ao sistema do ministro-juiz. A partir daqui há uma ordem gradualista em que o Conselho de Estado vai ganhando autonomia, que vai sendo reconhecida. À medida que vai julgando os litígios, o Conselho de Estado vai emitindo sentenças cada vez mais autónomas e independentes, e assume-se como verdadeiro tribunal.
O que vai acontecendo paulatinamente é que a secção contenciosa se autonomiza da secção administrativa, e funciona como verdadeiro Tribunal. Na secção administrativa há administradores, e na secção contenciosa estão os juízes que julgam a administração, sem que houvesse circulação entre um e outro órgão.
Em suma, houve uma autonomização gradual e progressiva que foi reconhecida pelo legislador, que vai, por exemplo, criar tribunais de 1a instância.
Em França aconteceu assim, mas, em Portugal, a Constituição de 1983 foi a primeira a integrar os tribunais administrativos na função jurisdicional. Do ponto de vista da nossa realidade, a Administração concordava com o juiz e executava a sentença, e, se não concordava, não executava. Assim, até que surja, como aconteceu em 1977, um sistema que permita executar, que permita que os particulares que estão perante uma sentença incumprida, obtenham seu cumprimento, só a partir daí é que estamos perante um verdadeiro tribunal.
Nos outros países foi mais cedo, mas, curiosamente, até se atingir o período seguinte, até se atingir o período da Confirmação, o Contencioso Administrativo continuará a ser entendido de forma limitada: naquilo que corresponde ao âmbito de aplicação; juízes não gozavam de plenitude de poderes face à Administração.
O último subperíodo (1873/1889) é o que vai marcar o modelo futuro do Contencioso Administrativo na lógica do quadro liberal. Dizia-se, nesta altura e em primeiro lugar que o ministro-juiz era um órgão do poder administrativo, e que havia uma lógica do exercício do quadro jurisdicional, em que o Ministro é a primeira instância do Contencioso. Depois, recorrer-se-ia da sua decisão par ao Conselho de Estado. Isto trará como consequência, desde logo, a regra de que haja uma decisão prévia de um Ministro, antes que um Tribunal possa decidir (recurso hierárquico necessário). A ideia do recurso marcará a justiça administrativa, a ponto de ainda hoje se falar em França em tal recurso; mesmo em Portugal, até 1985, o meio processual era o recurso directo de anulação. A ideia do recurso directo de anulação como meio processual em que o juiz apenas tem poderes de anulação de actos administrativos é algo que remonta a este momento do ministro-juiz.
A lógica hoje é que o juiz olha para o acto, e, se insatisfeito com o que foi trazido, pode suscitar outros meios de prova. Hoje, é uma acção, mas, antes, era considerado recurso.
Os liberais entendiam que, quanto menos o Estado interviesse, melhor. A lógica da mão invisível partia do princípio de que o Estado não tinha funções activas e, nessa perspectiva, o que cabia à Administração Pública fazer era garantir a segurança, liberdade e propriedade, exercendo a função de polícia. Daí que o modelo de Estado Liberal é um de Administração Polícia. Assim, os liberais nunca se preocuparam muito com o poder administrativo; a sua preocupação nunca foi na lógica do controle, mas na teorização do princípio da legalidade que significava que a Administração estava subordinada às regras do Parlamento.
O Estado Liberal tem uma dimensão viril, autoritária, dos seus pais, de Robes e Rousseau, e uma dimensão materna, de Lockes e Montesquieu, que é da separação de poderes. Os liberais não se preocupavam com o reconhecimento de direitos em face do Estado, uma vez que um indivíduo era sujeito de poder, e não de direito.
Ottomayer, um dos pais do Direito Administrativo, dizia ser inconcebível imaginar um direito do cidadão em relação ao Estado, pois tal significava reconhecer ao indivíduo uma situação de superioridade em relação ao Estado.
Isto levará a um Direito Administrativo concebido de forma autoritária, com actos que impõem comportamentos a particulares e executam essa posição, mesmo contra a vontade do particular. A teoria do acto administrativo, utilizada por Ottomayer e por Hauriou, é uma de acto autoritário. É que o definem como aquele que é igual a uma sentença que define o direito aplicável ao particular, no acto concreto.
Tal como as sentenças judiciais são obrigatórias, também os actos administrativos seriam executórios. Esta ideia autoritária do poder, da força, é ainda mais visível em Hauriou, que partia da comparação do acto com o negócio jurídico, pois correspondia ao exercício de poderes exorbitantes da Administração – outro trauma da Administração.
Este é o modelo acto-cêntrico do Direito Administrativo. O particular que ia a juízo, não ia para defender nenhum direito, mas antes para defender a legalidade do interesse público; o particular era um bom escuteiro que vem ajudar o juiz na legalidade do interesse público. O processo administrativo era objectivo, no sentido em que o objecto do litígio era uma realidade objectiva, um acto, um interesse público, independentemente das pessoas afectadas por ele.
2. Período do Baptismo
Neste momento há uma jurisdicionalização ou judicialização/tribunalização da justiça administrativa. Ainda que com a instauração do Estado Social, os tribunais administrativos se tornem verdadeiros tribunais, este momento entrará em crise, com consequente transformação do contencioso que consta na superação de alguns dos seus traumas de infância.
Uma mudança vai surgir com a mudança do Estado Liberal para o Estado Social, quando surgem regras sobre a intervenção do Estado e a Providência Social. Neste momento, a função das funções será a administrativa, daí se dizer que o Estado Social é um Estado de Administração. Em simultâneo com esta transformação, há uma outra que vai surgindo de forma mais ou menos evidente e que vai levar à passagem do Pecado Original para o Baptismo.
Este Baptismo, na realidade francesa, vai acontecendo. Num primeiro momento temos o Acórdão Blanco, de 1872. Vimos que a justiça delegada significava que o Contencioso continuava nas mãos da Administração e implicava a manutenção do sistema administrador- juiz. A partir de 1889, com o Acórdão Cadot, põe-se termo a esta teoria, e diz-se que o ministro é uma entidade administrativa, e o juiz uma entidade jurisdicional. O afastamento da teoria ministro-juiz é um dos primeiros momentos de afirmação jurisdicional do Conselho de Estado.
A melhor explicação para o Contencioso Administrativo é a ideia do milagre. O Conselho de Estado foi ganhando autonomia e, como tal, foi-lhe atribuído um estatuto de independência, ficando igual à dos tribunais. O milagre por detrás deste acontecimento é o da Administração se ter obrigado a subordinar-se ao Direito – auto-vinculação da Administração às regras jurídicas do Estado. Mas o Estado não é o dono do Direito mas antes um dos produtores de normas jurídicas. O que está em causa não tem a ver com uma realidade em que o Estado é dono do Direito, mas em que o Direito é uma realidade material em relação ao qual o Estado é apenas um sujeito de Direito.
Ao longo de todo o século XX francês, vão surgindo regras que visam consolidar a posição jurisdicional do Conselho do Estado, tais como as que criam tribunais administrativos logo na 1a instância. Há regras relativamente à execução das sentenças, de meios processuais provisórios, entre outras.
Será nesta altura que o Estado assume novas funções, nomeadamente a partir da Administração Pública. Na sequência de grandes crises que aconteceram nos finais do século XIX, início do século XX, o Estado chama novas intervenções que passam a criar também novos litígios.
Este período do Estado Social vai contribuir para a aproximação do sistema francês com o sistema anglo-saxónico. De alguma maneira podia dizer-se que, em relação a um liberalismo político, no quadro da realidade britânica, quem julgava a Administração eram os tribunais comuns, aplicando o direito comum. Este era o sistema nos paradigmas clássicos; no entanto, mesmo em Inglaterra já existia alguma tendência para proteger a Administração, porque julgávamos que os órgãos administrativos especiais tinham sido criados a partir do século XX, mas já havia nos séculos XIX e XVIII. Portanto, encontramos um paradigma que corresponde a um modelo originário de organização de justiça administrativa.
Esta realidade vai começar a mudar nos finais do século XIX, onde surgem novas regras, como as regras laborais ou sobe a Providência da Segurança Social. Portanto, esta realidade fará com que, no Reino Unido, surja Direito Administrativo. Olhando para as faculdades britânicas, nomeadamente para a London School of Economic, a partir de 1920 há uma disciplina jurídica chamada Direito Administrativo. Quer isto dizer que a ideia originária de que em Inglaterra não havia Direito Administrativo, é posta em causa.
Também se dizia que não havia Direito Administrativo, porque eram os tribunais comuns a julgar. Acontece que iremos verificar o aparecimento de órgãos chamados tribunals, órgãos administrativos especiais, que são realidades de um Contencioso especial, nascido da Administração e que, de alguma maneira, contribui para a proteger. Curiosamente estes tribunals têm outros poderes, pois ganham poderes de execução. Portanto a característica dos actos administrativos da auto-execução e susceptibilidade de execução coativa, estes tribunals vão ganhar. Tudo mostra uma primeira aproximação destes dois sistemas que surge até contraciclo, pois é o momento em que no sistema francês há uma jurisdicionalização, aparece, em Inglaterra, um movimento contra essa.
Também sabemos agora que, para além destes tribunals, vai surgir um verdadeiro tribunal administrativo – Administrative Court – que conduz a uma ideia de especialização jurisdicional no quadro da 1a instância do Contencioso Administrativo.
Esta realidade mostra como os problemas por que passa o Direito Administrativo e o Contencioso Administrativo são os mesmos em vários países, e as soluções são também as mesmas, ainda que em tempos diferentes.
Se foi assim na altura do Estado Social, nos dias de hoje, a partir da Constituição Alemã de 1949 e, sobretudo, a partir das Constituições de 1970, chegamos a um novo período:
3. O crisma do Contencioso Administrativo:
A partir de 1976: Modelo judicial em que se procura a criação de uma ordem de tribunais administrativos. Nesta fase altera-se o modelo processual de forma gradual com as várias revisões constitucionais. Em 1976 com o estabelecimento dos Direitos Fundamentais e respectivo regime resultou que os tribunais administrativos eram verdadeiros tribunais, todavia manteve-se o recurso contencioso de anulação. Em 1977 o DL 356-A/1977 estabelece que caso a AP não se pronunciasse se tinha o silêncio como indeferimento tácito, acto que poderia ser impugnado judicialmente. Veio ainda exigir a fundamentação dos actos desfavoráveis para os particulares e reformar o regime de execução de sentenças (possibilidade de se declararem os actos devidos em sentença). Em 1982 com a revisão constitucional alterou-se o art.º 269 que passa a 268 no qual se alarga o âmbito da jurisdição administrativa, acentuando a subjectivização do processo com uma nova acção em que se pede ao tribunal o reconhecimento de direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos (tutela directa das posições subjectivas dos particulares) e se exige notificação dos actos. Em 1984/1985 existe uma grande reforma do sistema administrativo com a consagração no Estatuto do STA e na Lei do Processo dos Tribunais Administrativos de novos meios processuais (pedido de declaração de ilegalidade de normas e acção para o reconhecimento de direitos), previu ainda a possibilidade de existência de acções não especificadas. Visou uniformizar a tramitação dos recursos contenciosos, eliminar limitações escandalosas aos direitos dos particulares, estabelecer novos meios acessórios, intensificar os poderes do juiz administrativo. Em 1989 com a revisão constitucional que alterou o art.º 267 visando eliminar a exigência de acto definitivo e decisório (introdução de um novo critério) como requisito de recorribilidade, todavia parte da doutrina continuava a defender que era necessário o acto ter eficácia externa. Implementou ainda o princípio do favorecimento do processo, alargou ainda o pedido de reconhecimento de um direito e permitiu que o juiz controlasse mais eficazmente os poderes discricionários através dos princípios constitucionais. Em 1997 com a revisão constitucional confirma-se as alterações de 1989, e visa-se aprofundar a tutela dos particulares (princípio da tutela jurisdicional efectiva). Em 2002 existe outra grande reforma da legislação ordinária que opera a mudança total do contencioso administrativo. A nível do ETAF (art.ºs 1 e 4) veio alargar-se o âmbito da jurisdição administrativa (contratos e responsabilidade civil). Consagrou expressamente a tutela jurisdicional efectiva no art.º 2 ETAF, criou dois tipos de acções, a acção administrativa comum – pedidos na linha do reconhecimento de direitos e quanto a contratos e responsabilidade – e a acção administrativa especial – pensada para as actuações da AP – (acções guarda chuva). A acção comum remete para o regime de processo civil e a acção especial segue o regime específico administrativo. Admitiu-se amplamente a cumulação de pedidos (art.º 4 e 47 do CPTA). A tramitação da acção administrativa especial não distingue a Administração central da local. Estabelecimento de meios principais urgentes (acções). Conceito muito mais vasto de legitimidade para a impugnação de actos administrativos. Reconhecimento do papel relevante do MP. Estabelecimento do princípio de igualdade de armas. Alargamento substancial das providências cautelares. Regulamentação do processo executivo no âmbito do contencioso (sentenças substitutivas e sanções pecuniárias compulsórias).

Mariana Garcia - 140111010

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