quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

As reclamações para a conferência.. Um final feliz

Com a reforma do contencioso administrativo de 2002/2004, a distribuição de competências entre os vários tribunais na hierarquia jurisdicional administrativa acarretou a transferência de muitos processos para os tribunais de círculo. A maior parte dos processos, que no contencioso anterior eram apreciados pelos tribunais superiores, passou a ser intentada nestes tribunais de primeira instância (cfr artigo 44.º do ETAF de 2004). A opção por um colectivo de juízes na primeira instância prendia-se com exigências de maior ponderação e imparcialidade quando estivessem em causa acções complexas que envolvessem altos órgãos da Administração Pública ou quando o valor da causa assim o justificasse (cfr artigo 40.º, n.ºs 2 e 3 do ETAF de 2004). A regra nos tribunais de círculo era a do julgamento por juiz singular, nos termos dos artigos 40.º, n.º 1 e 46.º, n.º1 , do ETAF de 2004.
Por razões de economia processual, no que respeitava aos recursos, permitia-se que o juiz ou relator pudesse proferir decisão sumária, evitando a actuação da conferência quando a matéria de fundo fosse de simples resolução, possibilitando que o recurso fosse apreciado pelo relator. Através do mecanismo consagrado no artigo 94.º, n.º3 do CPTA de 2002 , juiz podia chamar a si a competência que a priori seria de um colectivo de juízes.
Foi com o acórdão n.º3/2012, proferido no âmbito do Processo n.º 420/12, que o STA uniformizou jurisprudência relativamente à aplicação do artigo 21.º, n.º2 , do CPTA de 2002. Neste acórdão o STA tomou uma posição vincada quando à obrigatoriedade de reclamação para a conferência em detrimento do recurso. Esta tomada de posição chocou com a prática dos tribunais administrativos porque era muito comum que as decisões proferidas pelo juiz relator nos tribunais de primeira instância, no âmbito das acções administrativas especiais com um valor superior à alçada, fossem objecto de recurso para o tribunal superior. Isto acontecia sempre que o juiz não invocasse os poderes elencados no artigo 27.º, n.º1, alínea i), do CPTA. Até o STA se pronunciar, em 2012, a problemática em torno do artigo 27.º, nº2, do CPTA não era levantada. A jurisprudência não aplicava nem se pronunciava sobre este preceito que prescrevia a reclamação para conferência.
Dispunha o artigo 27.º , n.º1, alínea i), do CPTA:
1- Compete ao relator, sem prejuízo dos demais poderes que lhe são conferidos neste Código:
(...)
i) Proferir decisão quando entenda que a questão a decidir é simples, designadamente por já ter sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado, ou que a pretensão é manifestamente infundada; (Sublinhado nosso)

Dispunha o n.º 2 deste preceito:
2- Dos despachos do relator cabe reclamação para a conferência, com excepção dos de mero expediente, dos que recebam recursos de acórdãos do tribunal e dos proferidos no Tribunal Central Administrativo que não recebam recursos de acórdãos desse tribunal.
O problema é, a nosso ver, de interpretação.  Discordamos, neste ponto, do entendimento gizado pelo STA no acórdão n.º 3/2012. Bastará atentar nos conceitos indeterminados utilizados pelo legislador quando fez uso das expressões “questão de direito simples”, “pretensão manifestamente infundada” e “decisão”.
A recorrente, neste acórdão, notou que “ (...) No confronto da expressão «proferir decisão» constante da alínea i) do n.º1 do artigo 27.º do CPTA, com a norma contida no n.º2 do artigo 27.º do CPTA – norma que se entendeu no despacho em resposta obstar ao recurso jurisdicional – notamos o uso deliberado pelo legislador de diferentes expressões para obstar ao recurso jurisdicional (numa usa-se a expressão vaga «decisão» - alínea i) do n.º1, na outra a acepção concreta de «despachos» - nº2). (...) O n.º2 do artigo 27.º do CPTA obriga a submeter a conferência os «despachos do relator»”.
Considerou o tribunal superior que o n.º 2 do referido preceito abrange tanto os despachos interlocutórios como as decisões de mérito, não sendo pelo mero facto de o juiz dar o nome de sentença a uma decisão que as partes devem confiar na sua imediata possibilidade de recurso. Relembra ainda que no caso que lhe foi submetido, o juiz invocou os poderes da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º do CPTA.
Fixou o STA que “Das decisões do juiz relator sobre o mérito da causa, proferidas sob a invocação dos poderes conferidos no artigo 27.º, n.º1, alínea i) do CPTA, cabe reclamação para a conferência, nos termos do n.º2, não recurso”.
Entendeu este tribunal que também a conferência era uma forma apta e adequada “como outra qualquer de reagir contra decisões desfavoráveis que não limita – antes acrescenta- as formas de reacção.
Não podemos concordar com este entendimento. Como ANA FERNANDA NEVES concluiu, o recurso e a reclamação para a conferência constituem formas de reacção distintas. O recurso é muito mais garantístico do que a reclamação para a conferência, desde logo, ao nível dos prazos para se reagir.
Afirmou o STA que, para a correcção do mau uso dos meios contenciosos de reacção, existia a convulação. Assim, “ (...) nada obsta a que se convole oficiosamente o recurso em reclamação, ordenando-se a baixa dos autos ao TAF, para que aí seja apreciada enquanto reclamação para a conferência. (...) como se entendeu no citado Acórdão do STA de 19/10/2010, ‘só haverá um efectivo prosseguimento da forma processual adequada se for possível, se estiverem preenchidos todos os seus pressupostos, o que implica que os autos baixem ao Tribunal recorrido que decidirá se estão preenchidos os pressupostos para a apreciação do requerimento, enquanto reclamação e, no caso afirmativo, conhecerá do seu mérito’.”.
Aqui, acompanhamos a objecção feita por ARMINDO RIBEIRO MENDES quando “acusa”  o STA de assumir uma posição demasiado formalista ao ter sobreposto o princípio da tempestividade ao princípio do pleno acesso à justiça.
MARCO CALDEIRA  e TIAGO SERRÃO defenderam que os recursos interpostos antes de proferido o Acórdão do STA n.º3/2012 deveriam ser convolados em reclamação, devendo considerar-se apresentadas em tempo. Invocam o princípio da cooperação processual que deve garantir o conhecimento do mérito da causa, o princípio pro actione que determina que não pode ser desrespeitada e posta de lado a pretensão expressa de impugnar a sentença proferida por juiz singular em primeira instância.
O resultado prático da inflexibilidade do STA e da prática jurisprudencial conduziu à recompensa dos recorrentes que omitiam a violação do artigo 27.º, n.º1, alínea i) , do CPTA.
Este acórdão conduziu a resultados desastrosos, a uma proliferação de indeferimentos sumários de recursos de sentenças proferidas pelos tribunais de círculo, inclusivé de recursos pendentes há anos.
A questão foi suscitada junto do Tribunal Constitucional (TC) que se pronunciou no acórdão n.º 846/2013, de 10 de Dezembro e no acórdão n.º 124/2015. No primeiro acórdão, o TC pronunciou-se pela não inconstitucionalidade do artigo 27.º, n.º1, alínea i), do CPTA, no que respeita ao direito ao recurso como corolário do princípio da tutela jurisdicional plena. Aqui, o TC não apreciou a questão que lhe foi submetida tendo em conta os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança porque não foram objecto de requerimento de interposição de recurso. A resposta do TC parece-nos ter sido incapaz de resolver o problema na sua totalidade.
O acórdão n.º 124/2015 parece-nos mais relevante. Aqui, o TC decidiu:
“ a) julgar inconstitucional, por violação do princípio equitativo em conjugação com os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, consagrados nos artigos 2.º e 20.º, n.º4, da Constituição, a norma 27.º, n.º 1, alínea i), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretada no sentido de que a sentença proferida por tribunal administrativo e fiscal, em juiz singular, com base na mera invocação dos poderes conferidos por essa disposição, não é susceptível de recurso jurisdicional, mas apenas de reclamação para a conferência nos termos do n.º2 desse artigo.  (...)” (sublinhado nosso).
Como bem nota ANA FERNANDA NEVES, “ as situações de julgamento alargado, às quais se passa a circunscrever a exigência de decisão por tribunal colectivo, não permitirão em regra ter por verificado o pressuposto de que depende a aplicação da alínea i) do n.º1 do artigo 27.º do CPTA de 2002, ou seja, a simplicidade da(s) questão(ões) a decidir, pelo que o problema da aplicação desta norma tenderá a perder relevância.” .
Os novos ETAF e CPTA vieram pôr fim a esta polémica “dando resposta a anseio já antigo, eliminam-se, no artigo 40º, as excepções à regra de que os tribunais administrativos de círculo funcionam com juiz singular, a cada juiz competindo a decisão, de facto e de direito, dos processos que lhe sejam distribuídos.”. Em traços muito gerais, acaba-se com a hipótese de os tribunais de primeira instância funcionarem em formação alargada. Por outro lado, consagra-se a regra do juiz singular, o que permite resolver, na generalidade, os problemas subjacentes à “escolha” entre a reclamação para a conferência e o recurso.  Ambos os diplomas têm aplicabilidade imediata no que respeita a esta matéria, nos termos do artigo 15.º, n.º4 do Decreto-Lei n.º 214-G/2015.

Exigências de promoção da duração razoável dos processos, no âmbito do direito a uma decisão judicial em tempo razoável, conduziram a uma opção legislativa que nos parece ser a mais acertada.

Joana Santos Paiva 140112093

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