Com a reforma do contencioso administrativo de 2002/2004, a distribuição de
competências entre os vários tribunais na hierarquia jurisdicional
administrativa acarretou a transferência de muitos processos para os tribunais
de círculo. A maior parte dos processos, que no contencioso anterior eram
apreciados pelos tribunais superiores, passou a ser intentada nestes tribunais
de primeira instância (cfr artigo 44.º do ETAF de 2004). A opção por um
colectivo de juízes na primeira instância prendia-se com exigências de maior
ponderação e imparcialidade quando estivessem em causa acções complexas que
envolvessem altos órgãos da Administração Pública ou quando o valor da causa
assim o justificasse (cfr artigo 40.º, n.ºs 2 e 3 do ETAF de 2004). A regra nos
tribunais de círculo era a do julgamento por juiz singular, nos termos dos
artigos 40.º, n.º 1 e 46.º, n.º1 , do ETAF de 2004.
Por razões de economia processual, no que respeitava aos recursos,
permitia-se que o juiz ou relator pudesse proferir decisão sumária, evitando a
actuação da conferência quando a matéria de fundo fosse de simples resolução,
possibilitando que o recurso fosse apreciado pelo relator. Através do mecanismo
consagrado no artigo 94.º, n.º3 do CPTA de 2002 , juiz podia chamar a si a
competência que a priori seria de um colectivo de juízes.
Foi com o acórdão n.º3/2012, proferido no âmbito do Processo n.º 420/12,
que o STA uniformizou jurisprudência relativamente à aplicação do artigo 21.º,
n.º2 , do CPTA de 2002. Neste acórdão o STA tomou uma posição vincada quando à
obrigatoriedade de reclamação para a conferência em detrimento do recurso. Esta
tomada de posição chocou com a prática dos tribunais administrativos porque era
muito comum que as decisões proferidas pelo juiz relator nos tribunais de primeira
instância, no âmbito das acções administrativas especiais com um valor superior
à alçada, fossem objecto de recurso para o tribunal superior. Isto acontecia
sempre que o juiz não invocasse os poderes elencados no artigo 27.º, n.º1,
alínea i), do CPTA. Até o STA se pronunciar, em 2012, a problemática em torno
do artigo 27.º, nº2, do CPTA não era levantada. A jurisprudência não aplicava
nem se pronunciava sobre este preceito que prescrevia a reclamação para
conferência.
Dispunha o artigo 27.º , n.º1, alínea i), do CPTA:
1- Compete ao relator, sem prejuízo dos demais poderes que lhe são
conferidos neste Código:
(...)
i) Proferir decisão quando entenda que a questão a decidir
é simples, designadamente por já ter sido judicialmente apreciada de modo
uniforme e reiterado, ou que a pretensão é manifestamente infundada;
(Sublinhado nosso)
Dispunha o n.º 2 deste preceito:
2- Dos despachos do relator cabe reclamação para a conferência, com
excepção dos de mero expediente, dos que recebam recursos de acórdãos do tribunal
e dos proferidos no Tribunal Central Administrativo que não recebam recursos de
acórdãos desse tribunal.
O problema é, a nosso ver, de interpretação. Discordamos, neste
ponto, do entendimento gizado pelo STA no acórdão n.º 3/2012. Bastará atentar
nos conceitos indeterminados utilizados pelo legislador quando fez uso das
expressões “questão de direito simples”, “pretensão manifestamente infundada” e
“decisão”.
A recorrente, neste acórdão, notou que “ (...) No confronto da expressão
«proferir decisão» constante da alínea i) do n.º1 do artigo 27.º do CPTA, com a
norma contida no n.º2 do artigo 27.º do CPTA – norma que se entendeu no
despacho em resposta obstar ao recurso jurisdicional – notamos o uso deliberado
pelo legislador de diferentes expressões para obstar ao recurso jurisdicional
(numa usa-se a expressão vaga «decisão» - alínea i) do n.º1, na outra a acepção
concreta de «despachos» - nº2). (...) O n.º2 do artigo 27.º do CPTA obriga a
submeter a conferência os «despachos do relator»”.
Considerou o tribunal superior que o n.º 2 do referido preceito abrange
tanto os despachos interlocutórios como as decisões de mérito, não sendo pelo
mero facto de o juiz dar o nome de sentença a uma decisão que as partes devem
confiar na sua imediata possibilidade de recurso. Relembra ainda que no caso
que lhe foi submetido, o juiz invocou os poderes da alínea i) do n.º 1 do
artigo 27.º do CPTA.
Fixou o STA que “Das decisões do juiz relator sobre o mérito da causa,
proferidas sob a invocação dos poderes conferidos no artigo 27.º, n.º1, alínea
i) do CPTA, cabe reclamação para a conferência, nos termos do n.º2, não
recurso”.
Entendeu este tribunal que também a conferência era uma forma apta e
adequada “como outra qualquer de reagir contra decisões desfavoráveis que não
limita – antes acrescenta- as formas de reacção.
Não podemos concordar com este entendimento. Como ANA FERNANDA NEVES
concluiu, o recurso e a reclamação para a conferência constituem formas de
reacção distintas. O recurso é muito mais garantístico do que a reclamação para
a conferência, desde logo, ao nível dos prazos para se reagir.
Afirmou o STA que, para a correcção do mau uso dos meios contenciosos de
reacção, existia a convulação. Assim, “ (...) nada obsta a que se convole
oficiosamente o recurso em reclamação, ordenando-se a baixa dos autos ao TAF,
para que aí seja apreciada enquanto reclamação para a conferência. (...) como
se entendeu no citado Acórdão do STA de 19/10/2010, ‘só haverá um efectivo
prosseguimento da forma processual adequada se for possível, se estiverem
preenchidos todos os seus pressupostos, o que implica que os autos baixem ao
Tribunal recorrido que decidirá se estão preenchidos os pressupostos para a apreciação
do requerimento, enquanto reclamação e, no caso afirmativo, conhecerá do seu
mérito’.”.
Aqui, acompanhamos a objecção feita por ARMINDO RIBEIRO MENDES quando
“acusa” o STA de assumir uma posição demasiado formalista ao ter
sobreposto o princípio da tempestividade ao princípio do pleno acesso à
justiça.
MARCO CALDEIRA e TIAGO SERRÃO defenderam que os recursos
interpostos antes de proferido o Acórdão do STA n.º3/2012 deveriam ser
convolados em reclamação, devendo considerar-se apresentadas em tempo. Invocam
o princípio da cooperação processual que deve garantir o conhecimento do mérito
da causa, o princípio pro actione que determina que não pode
ser desrespeitada e posta de lado a pretensão expressa de impugnar a sentença
proferida por juiz singular em primeira instância.
O resultado prático da inflexibilidade do STA e da prática jurisprudencial
conduziu à recompensa dos recorrentes que omitiam a violação do artigo 27.º,
n.º1, alínea i) , do CPTA.
Este acórdão conduziu a resultados desastrosos, a uma proliferação de
indeferimentos sumários de recursos de sentenças proferidas pelos tribunais de
círculo, inclusivé de recursos pendentes há anos.
A questão foi suscitada junto do Tribunal Constitucional (TC) que se
pronunciou no acórdão n.º 846/2013, de 10 de Dezembro e no acórdão n.º
124/2015. No primeiro acórdão, o TC pronunciou-se pela não
inconstitucionalidade do artigo 27.º, n.º1, alínea i), do CPTA, no que respeita
ao direito ao recurso como corolário do princípio da tutela jurisdicional plena.
Aqui, o TC não apreciou a questão que lhe foi submetida tendo em conta os
princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança porque não foram
objecto de requerimento de interposição de recurso. A resposta do TC parece-nos
ter sido incapaz de resolver o problema na sua totalidade.
O acórdão n.º 124/2015 parece-nos mais relevante. Aqui, o TC decidiu:
“ a) julgar inconstitucional, por violação do princípio
equitativo em conjugação com os princípios da segurança jurídica e da protecção
da confiança, consagrados nos artigos 2.º e 20.º, n.º4, da
Constituição, a norma 27.º, n.º 1, alínea i), do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos, interpretada no sentido de que a sentença proferida
por tribunal administrativo e fiscal, em juiz singular, com base na mera
invocação dos poderes conferidos por essa disposição, não é susceptível de
recurso jurisdicional, mas apenas de reclamação para a conferência nos termos
do n.º2 desse artigo. (...)” (sublinhado nosso).
Como bem nota ANA FERNANDA NEVES, “ as situações de julgamento alargado, às
quais se passa a circunscrever a exigência de decisão por tribunal colectivo,
não permitirão em regra ter por verificado o pressuposto de que depende a
aplicação da alínea i) do n.º1 do artigo 27.º do CPTA de 2002, ou seja, a
simplicidade da(s) questão(ões) a decidir, pelo que o problema da aplicação
desta norma tenderá a perder relevância.” .
Os novos ETAF e CPTA vieram pôr fim a esta polémica “dando resposta a
anseio já antigo, eliminam-se, no artigo 40º, as excepções à regra de que os
tribunais administrativos de círculo funcionam com juiz singular, a cada juiz
competindo a decisão, de facto e de direito, dos processos que lhe sejam
distribuídos.”. Em traços muito gerais, acaba-se com a hipótese de os
tribunais de primeira instância funcionarem em formação alargada. Por outro
lado, consagra-se a regra do juiz singular, o que permite resolver, na
generalidade, os problemas subjacentes à “escolha” entre a reclamação para a
conferência e o recurso. Ambos os diplomas têm aplicabilidade
imediata no que respeita a esta matéria, nos termos do artigo 15.º, n.º4 do
Decreto-Lei n.º 214-G/2015.
Exigências de promoção da duração razoável dos processos, no âmbito do
direito a uma decisão judicial em tempo razoável, conduziram a uma opção
legislativa que nos parece ser a mais acertada.
Joana Santos Paiva 140112093
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