Tendo como ponto de partida o
actual artigo 4º nº1 e) ETAF, percebemos que a noção de contrato administrativo
sofreu uma grande evolução ao longo das diversas sessões de psicanálise do
Contencioso Administrativo.
No tempo da “infância difícil
do contencioso”, a figura dos contratos caracterizava-se por uma dicotomia
entre os contratos administrativos e os contratos de direito privado da
Administração. Os primeiros evidenciavam aquela que era a realidade do
contencioso administrativo na altura – este existia para proteger a
Administração. Assim, estes contratos estavam isentos do controlo judicial,
detendo por isso um privilégio processual. Já os contratos ditos de direito
privado da Administração eram regulados pelo direito civil e integravam a
competência dos tribunais ordinários.
O que começou por ser um
privilégio apenas a nível processual, passou, no início do século XX, a ser uma
realidade substantiva. Surge nesta altura um fenómeno de teorização, de busca
de critérios jurídico-materiais que justificassem esta distinção. Nasce, a posteriori, a teoria do contrato
administrativo, com o intuito de justificar um regime processual já existente.
Esta assenta na ideia dos privilégios exorbitantes da Administração como
justificação para a existência de um regime especial, quer processual quer
substantivo para os contratos através dos quais a Administração exercia poderes
autoritários. A este contrapõe-se o regime “comum” de direito privado para os
demais contratos em que interviesse a Administração.
A partir dos anos 70/80
começou a pôr-se em causa a autonomia dos contratos administrativos enquanto
tal e a questionar-se esta distinção "esquizofrénica", uma vez que os contratos
administrativos não eram, por um lado, exorbitantes, nem, por outro, exactamente
iguais aos contratos celebrados por particulares (ex: utilização de dinheiros
públicos). Acresce o facto de se
assistir nesta altura a uma generalização da utilização de formas contratuais
pela Administração Pública enquanto modo normal de exercício da sua função.
Esta tendência para a “unicidade” de tratamento de toda a actividade contratual
foi introduzida na ordem jurídica portuguesa pela Professora Maria João
Estorninho e aceite por uma boa parte da doutrina, de que é exemplo o Professor
Vasco Pereira da Silva, o Professor André Salgado Matos ou o Professor João
Caupers. No entanto, esta questão foi colocada apenas em termos teóricos, não tendo havido alterações a nível legislativo.
Foi necessária a intervenção
do Direito Europeu, nos anos 90, para alterar definitivamente esta realidade. Este
defendia a aproximação de todas as formas contratuais no exercício da função
administrativa, de forma a não existirem restrições às liberdades fundamentais
europeias. Exemplo desta situação é a necessidade de criar um regime que
permitisse um cidadão de um país membro da UE participar num concurso público num outro país da UE. Foi por via de diversas
Directivas que a União Europeia criou um verdadeiro Direito Europeu de Contratação
Pública, independentemente das classificações nacionais. Para tal recorreu aos critérios materiais do
fim prosseguido e da natureza da actividade. Assim, a título de exemplo, em
certos sectores, como água, eletricidade ou energia, todos os contratos
celebrados, independentemente de quem os celebra, têm de ter um regime
especial, justificado pelo interesse público a eles subjacente.
Também Portugal adoptou a
(quase) unidade do Contencioso Contratual da Função Administrativa. O código da
Contratação Pública acolheu de facto, a noção ampla de contrato
administrativo, estabelecendo o legislador uma disciplina geral e completa de
todos os contratos em que intervém a Administração. Porém, como a terapia da
psicanálise por vezes apresenta falhas, o legislador português não resistiu a
continuar a chamar a uma das espécies de contratos públicos, contratos
administrativos, como vemos no artigo 1º nº1 CCP... Resta-nos, por isso, aconselhar mais uma sessão de psicanálise.
Mariana Terra da Motta
140112004
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