quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O Contencioso Contratual da Função Administrativa – prova da (quase) plena eficácia da psicanálise


Tendo como ponto de partida o actual artigo 4º nº1 e) ETAF, percebemos que a noção de contrato administrativo sofreu uma grande evolução ao longo das diversas sessões de psicanálise do Contencioso Administrativo.

No tempo da “infância difícil do contencioso”, a figura dos contratos caracterizava-se por uma dicotomia entre os contratos administrativos e os contratos de direito privado da Administração. Os primeiros evidenciavam aquela que era a realidade do contencioso administrativo na altura – este existia para proteger a Administração. Assim, estes contratos estavam isentos do controlo judicial, detendo por isso um privilégio processual. Já os contratos ditos de direito privado da Administração eram regulados pelo direito civil e integravam a competência dos tribunais ordinários. 

O que começou por ser um privilégio apenas a nível processual, passou, no início do século XX, a ser uma realidade substantiva. Surge nesta altura um fenómeno de teorização, de busca de critérios jurídico-materiais que justificassem esta distinção. Nasce, a posteriori, a teoria do contrato administrativo, com o intuito de justificar um regime processual já existente. Esta assenta na ideia dos privilégios exorbitantes da Administração como justificação para a existência de um regime especial, quer processual quer substantivo para os contratos através dos quais a Administração exercia poderes autoritários. A este contrapõe-se o regime “comum” de direito privado para os demais contratos em que interviesse a Administração.

A partir dos anos 70/80 começou a pôr-se em causa a autonomia dos contratos administrativos enquanto tal e a questionar-se esta distinção "esquizofrénica", uma vez que os contratos administrativos não eram, por um lado, exorbitantes, nem, por outro, exactamente iguais aos contratos celebrados por particulares (ex: utilização de dinheiros públicos). Acresce o facto  de se assistir nesta altura a uma generalização da utilização de formas contratuais pela Administração Pública enquanto modo normal de exercício da sua função. Esta tendência para a “unicidade” de tratamento de toda a actividade contratual foi introduzida na ordem jurídica portuguesa pela Professora Maria João Estorninho e aceite por uma boa parte da doutrina, de que é exemplo o Professor Vasco Pereira da Silva, o Professor André Salgado Matos ou o Professor João Caupers. No entanto, esta questão foi colocada apenas em termos teóricos, não tendo havido alterações a nível legislativo.

Foi necessária a intervenção do Direito Europeu, nos anos 90, para alterar definitivamente esta realidade. Este defendia a aproximação de todas as formas contratuais no exercício da função administrativa, de forma a não existirem restrições às liberdades fundamentais europeias. Exemplo desta situação é a necessidade de criar um regime que permitisse um cidadão de um país membro da UE participar num concurso público  num outro país da UE. Foi por via de diversas Directivas que a União Europeia criou um verdadeiro Direito Europeu de Contratação Pública, independentemente das classificações nacionais.  Para tal recorreu aos critérios materiais do fim prosseguido e da natureza da actividade. Assim, a título de exemplo, em certos sectores, como água, eletricidade ou energia, todos os contratos celebrados, independentemente de quem os celebra, têm de ter um regime especial, justificado pelo interesse público a eles subjacente.

Também Portugal adoptou a (quase) unidade do Contencioso Contratual da Função Administrativa. O código da Contratação Pública acolheu de facto, a noção ampla de contrato administrativo, estabelecendo o legislador uma disciplina geral e completa de todos os contratos em que intervém a Administração. Porém, como a terapia da psicanálise por vezes apresenta falhas, o legislador português não resistiu a continuar a chamar a uma das espécies de contratos públicos, contratos administrativos, como vemos no artigo 1º nº1 CCP... Resta-nos, por isso, aconselhar mais uma sessão de psicanálise. 

Mariana Terra da Motta
140112004



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