terça-feira, 3 de novembro de 2015

Morreu o recurso de anulação! Morreu a acção administrativa especial! Viva a nova acção administrativa!

A 1 de Janeiro de 2004, o legislador “aniquilou” finalmente o recurso de anulação e deu lugar à “subida ao trono” da acção de impugnação, uma subespécie da acção administrativa especial. Deixou de se limitar os pedidos à anulação do acto, permitindo-se a cumulação dos mesmos e, consequentemente, efectivou-se a tutela plena e efectiva dos direitos dos titulares nas relações jurídico-administrativas.
De um contencioso centrado na legalidade objectiva, passou-se para um contencioso cuja amplitude seria tão ampla quantos os direitos dos particulares necessitados de tutela - um contencioso de plena jurisdição.
O “falecido” recurso de anulação não permitia dar resposta ao imperativo constitucional derivado do princípio da tutela plena e efectiva, (nomeadamente nos casos em que o acto administrativo tenha sido total ou parcialmente executado), uma vez que os actos administrativos produzem efeitos imediatos na esfera dos particulares. Assim, o particular pretenderia não apenas a anulação, antes que o acto (que já foi executado) fosse “apagado” da ordem jurídica (ex.: expulsão de um serviço público, não concessão de uma bolsa...). Ora, tal não decorre apenas do pedido de anulação, tendo um conteúdo que vai além do carácter constitutivo das sentenças.
Apesar da doutrina clássica entender que o recurso de anulação era (de facto) de mera anulação, cabiam nos efeitos da sentença outros efeitos para além do direito cassatório. Era este o entendimento do Professor Vasco Pereira da Silva, no seguimento do qual elaborou duas teses: (1) o recurso direto de anulação não é um recurso; (2) o recurso directo de anulação não é (apenas) de anulação.
Não era um recurso, era uma acção, dado que até aí tudo se tinha passado no seio da administração, e só agora se levava a relação controvertida perante o juiz - é a primeira apreciação jurisdicional de um litígio administrativo.
Não era (apenas) de anulação porque o que o titular queria fazer valer não era apenas o efeito cassatório, mas pretendia que a administração fosse condenada a refazer a situação em que o particular se encontraria se aquele acto não tivesse existido – no entender do Professor “as sentenças ditas de anulação podiam também possuir [...] outros efeitos de natureza conformativa e repristinatória”.
Com a Reforma de 2004, que permitiu a cumulação de pedidos (bastando que se trate da mesma relação jurídica, ou de outra similar), o processo é (sempre que não tenha havido suspensão dos efeitos do ato administrativo) de natureza mista porque, por um lado vai envolver a cumulação de pedidos, e por outro as sentenças vão ser mistas.
As acções tornaram-se de plena jurisdição, em que o juiz goza da plenitude de todos os poderes e os particulares podem suscitar todos os pedidos.
É, no entanto, necessário distinguir entre cumulações reais (cada um dos pedidos possui uma expressão económica própria) e aparentes (se dizem respeito a um mesmo bem em sentido económico) de pedidos.
Para que possamos fazer um “luto lento” do recurso de anulação, o legislador deu preferência à cumulação aparente de pedidos, ao referir apenas estas situações na enumeração exemplificativa das hipóteses de cumulação de pedidos, sendo que tudo o que vá para além da “simples anulação” é uma cumulação real de pedidos. Mais um resquício da infância difícil...
Ora, a Novíssima Reforma de 2015 traduziu-se na eliminação da bipartição entre acção administrativa comum e administrativa especial e correspondente unificação de todos os processos não-urgentes sob uma mesma forma de processo, agora denominada acção administrativa, conforme o novo Título II. Não obstante, o seu objecto respeitar a actos, contratos ou regulamentos, ter por base actuações materiais ou pedidos de responsabilidade civil da Administração, todos os processos administrativos não-urgentes seguem agora forma e tramitação únicas.
De facto, na formulação originária, o legislador apenas regulava a acção especial, remetendo a acção comum para o Processo Civil.
Contudo, tal unificação sob o ponto de vista da tramitação não contende, no entanto, com a manutenção das especialidades de cada meio processual não urgente, reflectidas na manutenção de previsões específicas para a impugnação de actos administrativos (artigos 50.º a 65.º), de condenação à prática de actos administrativos (artigos 66.º a 71.º), de impugnação de normas (artigos 72.º a 76.º) e de condenação à emissão de normas (artigo 77.º) – correspondentes, em larga medida, às já previstas na antiga acção administrativa especial – e na autonomização de uma nova Secção destinada às acções relativas à validade e execução de contratos (artigos 77.º-A e 77.º-B). Deste modo, na prática continua-se a distinguir quatro modalidades de subacções: acção de anulação, de condenação, em matéria de regulamentos e em matéria de contratos públicos.    
Lamentavelmente, segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, continuou a utilizar-se um critério substantivo e não apenas critérios processuais. Além do mais, admitindo-se a utilização de um critério substantivo, inúmeras situações foram esquecidas e deixadas de lado.
A novidade do processo de impugnação, introduzida em 2002 e finalizada em 2015, foi, como temos vindo a afirmar, a criação de um processo misto, que como acima mencionado poderá implicar a existência de vários pedidos cumulados.
Deste modo, actualmente, após a Reforma e a Novíssima Reforma, estamos perante uma acção administrativa, em que o particular pode cumular pedidos diferenciados. A acção não será de simples apreciação, antes terá um carácter misto.
O paradoxo das acções de impugnação nos nossos dias e de ter aberto o Contencioso Administrativo a uma realidade onde o objecto do processo é mais alargado e atribui ao juiz poderes de condenação e de simples apreciação e não apenas de anulação.
De facto, teria já Cassesse afirmado que Maurice Hauriou teria vaticinado a morte do recurso de anulação e consequente transformação em recurso de plena jurisdicionalização. Conforme escrevia: “Maurice Hauriou, um dos grandes mestres do Direito Público da primeira metade do século XX, profetizou um dia que o juízo de anulação confluiria no contencioso de plena jurisdição, enriquecendo a lista dos direitos adquiridos dos cidadãos”. (SABINO CASSESSE, «La Piena.Giurisdizione del Giudice Amministrativo»). Estamos, então, perante uma radical alteração do Contencioso Administrativo e consequente superação de um dos traumas da infância perdida.

Bibliografia:
·         VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo», 2ª. edição, Almedina, Coimbra, 2009.
·         «Temas e Problemas de Processo Administrativo – Intervenções do Curso de Pós-graduação sobre o Processo Administrativo» (“e-book”), ICJP, Lisboa, 2010

Filipa Bernardes Vilela, 140112061
Iolanda Dias Magalhães, 140112054

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