terça-feira, 27 de outubro de 2015

A odisseia do Prédio Coutinho – uma “coroa de glória” da tutela cautelar no Processo Administrativo Português



Aconteceu quando a proteção cautelar no Processo Administrativo era ainda jovem em Portugal. Tinha 6 anos. Chegou apenas em 2000 ao nosso Contencioso Administrativo, mas a tempo de garantir a proteção dos direitos dos moradores do afamado Prédio Coutinho, em Viana do Castelo. Não tivessem os particulares moradores, principais interessados, recorrido à figura da providência cautelar, já há muito que a Administração Pública teria executado a decisão administrativa de declarar o imóvel de utilidade pública, expropriando-o totalmente e demolindo o edifício. Isto, independentemente da decisão final dos tribunais, Administrativos e Constitucional, em relação à ação principal, ou seja, ao pedido de nulidade da declaração de Utilidade Pública para a expropriação das frações.

É uma longa história, sobre um longo edifício e uma longa caminhada do Contencioso Administrativo que esbarrou a tempo com o fenómeno da europeização.

Mas vamos por partes:

O Prédio Coutinho tem sido repetidamente notícia desde 2005 na comunicação social. É um edifício de 13 andares, com 105 frações e onde viviam cerca de 300 pessoas. Construído nos anos 70, bem no coração da cidade de Viana do Castelo. Se fosse em Lisboa, ou mesmo no Porto, provavelmente seria mais um, longo em altura, e ninguém quase daria por ele. Mas foi construído numa cidade relativamente pequena, num local onde urbanisticamente aquele prédio se destaca, mesmo junto à margem do rio Lima. Há mesmo quem lhe chame um “aborto arquitetónico” e quem levante sérias dúvidas acerca da legalidade do processo de licença de construção concluído pela Câmara Municipal. 

O problema é que nos anos 70 o urbanismo era mais uma variante dos interesses difusos que pouco ou nada relevava, ao contrário do que acontece hoje em dia em que esses interesses são extremamente importantes.

No início deste novo século, a “bomba” que poderá ainda vir a deitar por terra o Prédio Coutinho começou a ser fabricada: a decisão administrativa de Declaração de Utilidade Pública para a expropriação e demolição. A 16 de Agosto de 2005 foi publicada em Diário da República a dita declaração.

É verdade que as tentativas do município em fazer desaparecer o prédio já foram algumas desde 1975, mas também é verdade que nunca foram avante por razões económicas, já que a implosão fica cara ao erário público e já que, até 2005, as razões da estética, do urbanismo, pesaram sempre menos do que as razões económicas. Ainda hoje é uma questão polémica tendo em conta o interesse público em causa que deve ser de facto atendido: se o interesse de todos por razões estéticas, se o interesse daqueles particulares que têm direito a querer ficar com a sua morada de família que adquiriram de boa fé (alguns são moradores desde que o prédio existe), ou até mesmo o interesse público de não se gastar tanto dinheiro (alguns milhões de euros) na implosão de um edifício, há tantos anos de pé, e aplicar essas verbas noutro tipo de obras mais relevantes para a população da cidade.

A Sociedade Viana Pólis, empresa pública cujas quotas são divididas pelo Ministério do Ambiente e pela Câmara Municipal de Viana do Castelo tem funções específicas neste processo do Prédio Coutinho: tratar da expropriação, das indemnizações aos particulares que ficariam sem casa e negociar com eles uma solução de realojamento noutra zona da cidade, em habitações municipais que entretanto foram construídas de raiz para esse efeito.

Alguns desses moradores aceitaram a bem a expropriação da respetiva fração e a devida indemnização e realojamento. Outros não e esses outros reagiram juridicamente, num litigio de natureza administrativa contra a Administração Pública. Superaram-se alguns dos «traumas da infância difícil do Direito Administrativo», como Vasco Pereira da Silva costuma dizer, e os particulares e a Administração Pública vão a juízo como partes iguais, sujeitos de uma relação jurídica administrativa, em que está em causa sobretudo o exercício da função administrativa, não havendo nesta relação de conflito jurídico qualquer privilégio da Administração. Felizmente.

Nesta parte da história entra o que Fausto Quadros chama como «instrumento mais importante da europeização» do Direito Administrativo: as providências cautelares.

Se ainda hoje o Prédio Coutinho, melhor ou pior, está de pé, isso deve-se exclusivamente à reação dos particulares afetados pela decisão de um órgão da Administração Pública, neste caso Administração Autónoma, em expropriar e demolir o edifício. Puderam reagir a tempo, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que lhes deu provimento às providências cautelares interpostas.

O objetivo era evitar que a AP executasse a decisão administrativa e, depois, mesmo que a sentença final da ação principal, mesmo em última instância, lhes fosse favorável, já de nada adiantaria. Seria tarde, porque o bem e os direitos dos particulares já tinham sido irreversivelmente afetados. Citando J. Morand-Deviller, uma situação inadmissível do ponto de vista da equidade, em que o facto consumado levava a melhor sobre a autoridade do caso julgado.

Mas a mudança de paradigma do contencioso Administrativo português, como refere Vasco Pereira da Silva, está agora voltada para a proteção plena e efetiva dos direitos dos particulares. Foi criado na reforma do Contencioso Administrativo de 2000 um regime para as situações de urgência, confiado este aos tribunais de primeira instância. A ideia foi fruto da europeização, fenómeno que afetou e afeta até hoje o nosso Direito Administrativo, para que se oferecessem aos administrados garantias equivalentes às do processo civil. E este regime para a urgência envolve três processos cautelares: de suspensão, que conduz à suspensão da eficácia mas num regime mais aberto do que anteriormente, tornando-se a regra, como diz Fromont, sempre que o requerente merece proteção; o processo de injunção, que é afinal um meio completamente original que vem atribuir mais poderes ao juiz, a um único juiz, para dar ordenas à AP numa situação rápida; e o processo de conservação, que no domínio do plano pré-contratual «atribui amplos poderes de intervenção ao tribunal», de acordo com Vasco Pereira da Silva.

Neste caso do Prédio Coutinho, preencheram-se os pressupostos da urgência e da dúvida séria quanto à legalidade da decisão administrativa de expropriar e demolir propriedade privada. Os particulares requereram ao tribunal de 1ª instancia a suspensão da eficácia e o Juiz garantiu-lhes esse direito.

Hoje o Prédio Coutinho ainda está de pé. Já lá vão mais de 10 anos de litígio nos tribunais. Bateu todas as instâncias e em 2014 o Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se de forma favorável à Administração, dando luz verde à decisão administrativa  de Declaração de utilidade pública do imóvel e consequente execução. Ou seja, não considerou que no processo houvesse causa de anulação da decisão e que estavam por isso justificadas a expropriação e a demolição. Não deu razão ao pedido dos particulares, fazendo antever assim o fim trágico do arranha-céus de Viana do Castelo. 

O que, de resto, ainda só não aconteceu desde 2005, primeiro: devido às providências cautelares interpostas, e ao seu efeito eficaz de suspensão da decisão da AP; segundo: porque apesar de haver já decisão da última instância, do Supremo Tribunal Administrativo, os particulares recorreram entretanto para o Tribunal Constitucional, ação que foi admitida e com efeito suspensivo.

Ou seja, até ao dia de hoje e passados quase 11 anos, o Prédio Coutinho mantém-se. Alto, em altura e em valor atribuído à ação cautelar. Como uma autêntica “coroa de glória” da tutela cautelar do Direito Administrativo Português. 

Maria Helena Silva da Fonseca
Aluna nº 140112507

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