Historicamente,
o Contencioso era um processo sem partes, uma vez que se considerava que o que
estava em jogo não eram direitos nem posições dos particulares; a posição do
particular era uma espécie de Ministério Público.
Esta
construção objectiva desligava o processo das posições subjectivas, mas poderia
originar um processo que funcionasse na base da acção popular. No entanto, as
regras da legitimidade deveriam permitir que um número ilimitado de pessoas acedesse
ao processo.
A
afirmação da realidade objectiva obrigava a que não se considerasse que o
particular tinha algo a ver com o processo, mas como se queria que o processo
continuasse a depender do particular atribuía-se-lhe uma legitimidade
qualificada, derivada da lesão de um interesse de facto. O particular não tem
um interesse jurídico que o leva ir a juízo, mas tem um interesse de facto por
ter sido afectado por aquela decisão – um senhor vai para a caça acompanhado do
que pensa ser um Basset e a meio da caçada apercebe-se que o que tem é um
Caniche. (Tal como no Contencioso administrativo ambos os cenários fazem vista,
mas o primeiro seria incrivelmente mais vantajoso para o senhor em causa.)
Esta
ideia da inexistência de partes aplicava-se tanto à administração como aos
particulares – a administração e o juíz não eram partes porque pertenciam ao
mesmo poder.
Assim,
até 2004 trata-se a administração como uma autoridade recorrida, cujo acto se
recorre para tribunal, mas que não é uma parte em sentido rigoroso.
Ao
dizer-se que estava em causa uma relação jurídica substantiva algumas
consequências processuais nasciam: o particular e a administração actuavam no
quadro daquele processo para defender a respectiva relação. No entanto,
pertencendo a administração ao mesmo poder que o juíz, facilmente percebemos
que a igualdade de armas era claramente inexistente.
Podemos
assim dizer que, ao jeito de Animal Farm,
até 2004 as partes eram como os animais: todos iguais, mas uns mais iguais do
que outros. No entanto, enquanto os porcos mantiveram a quinta movida por esta
máxima, em Portugal deu-se uma transformação radical em relação à doutrina
francesa objectivista, e assistimos agora a um verdadeiro processo de partes,
claramente plasmado no Artigo 6º do novíssimo CPTA, já não estando uns no
celeiro e outros vestidos, dentro de casa, a andar em duas patas e a fazer
acordos vantajosos com os fazendeiros vizinhos.
Por
fim, há apenas que acrescentar que o primeiro esforço do legislador neste
sentido dá-se em 1985, mas o salto de transformação do processo numa realidade
de partes não se conseguiu concretizar (por exemplo, seria impensável a
administração pagar custas). Tivesse o legislador tentado esta transformação um
ano antes e as analogias com Orwell seriam certamente mais interessantes.
Maria Inês Serrazina, 140112006
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