quarta-feira, 14 de outubro de 2015

A bicharada, George Orwell e o Contencioso Administrativo


Historicamente, o Contencioso era um processo sem partes, uma vez que se considerava que o que estava em jogo não eram direitos nem posições dos particulares; a posição do particular era uma espécie de Ministério Público.
Esta construção objectiva desligava o processo das posições subjectivas, mas poderia originar um processo que funcionasse na base da acção popular. No entanto, as regras da legitimidade deveriam permitir que um número ilimitado de pessoas acedesse ao processo.
A afirmação da realidade objectiva obrigava a que não se considerasse que o particular tinha algo a ver com o processo, mas como se queria que o processo continuasse a depender do particular atribuía-se-lhe uma legitimidade qualificada, derivada da lesão de um interesse de facto. O particular não tem um interesse jurídico que o leva ir a juízo, mas tem um interesse de facto por ter sido afectado por aquela decisão – um senhor vai para a caça acompanhado do que pensa ser um Basset e a meio da caçada apercebe-se que o que tem é um Caniche. (Tal como no Contencioso administrativo ambos os cenários fazem vista, mas o primeiro seria incrivelmente mais vantajoso para o senhor em causa.)
Esta ideia da inexistência de partes aplicava-se tanto à administração como aos particulares – a administração e o juíz não eram partes porque pertenciam ao mesmo poder.
Assim, até 2004 trata-se a administração como uma autoridade recorrida, cujo acto se recorre para tribunal, mas que não é uma parte em sentido rigoroso.
Ao dizer-se que estava em causa uma relação jurídica substantiva algumas consequências processuais nasciam: o particular e a administração actuavam no quadro daquele processo para defender a respectiva relação. No entanto, pertencendo a administração ao mesmo poder que o juíz, facilmente percebemos que a igualdade de armas era claramente inexistente.
Podemos assim dizer que, ao jeito de Animal Farm, até 2004 as partes eram como os animais: todos iguais, mas uns mais iguais do que outros. No entanto, enquanto os porcos mantiveram a quinta movida por esta máxima, em Portugal deu-se uma transformação radical em relação à doutrina francesa objectivista, e assistimos agora a um verdadeiro processo de partes, claramente plasmado no Artigo 6º do novíssimo CPTA, já não estando uns no celeiro e outros vestidos, dentro de casa, a andar em duas patas e a fazer acordos vantajosos com os fazendeiros vizinhos.

Por fim, há apenas que acrescentar que o primeiro esforço do legislador neste sentido dá-se em 1985, mas o salto de transformação do processo numa realidade de partes não se conseguiu concretizar (por exemplo, seria impensável a administração pagar custas). Tivesse o legislador tentado esta transformação um ano antes e as analogias com Orwell seriam certamente mais interessantes.

Maria Inês Serrazina, 140112006

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